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Um simulacro de avaliação
Embora crítico do Estatuto da Carreira Docente (ECD) que vigorou até à aprovação do novo ECD pelo Decreto-Lei nº 15/2007, de 19 de Janeiro, não recebi este novo diploma favoravelmente. O seu conteúdo, em diversas áreas, e a forma como foi aprovado, em braço-de-ferro com os sindicatos e os professores, não auguram nada de bom. Em qualquer caso, a principal crítica que formulei, desde as primeiras versões do documento, embora contra a opinião da maioria dos intervenientes, foi a de que o ECD proposto insistia em criar duas categorias de professor mas, contraditoriamente, se revelava pouco exigente, em termos substantivos, quanto à avaliação do currículo académico, científico e profissional dos docentes, manifestando dificuldades em libertar-se das amarras técnico-burocráticas que vêm dominando as escolas e os professores portugueses.
O primeiro exemplo disso mesmo aí está, em toda a sua expressão, com o recente concurso para professor titular. Tratou-se da pior forma de iniciar a execução do ECD, deixando claro que o regime transitório de recrutamento de professores titulares (regulado pelo Decreto-Lei nº 200/2007, de 22 de Maio) recusou a possibilidade de uma avaliação séria e credível dos candidatos.
Quem conhece por dentro, com profundidade e criticidade, as escolas portuguesas, só dificilmente será capaz de assegurar que o processo seguido terá contribuído para "dotar as escolas de um corpo docente altamente qualificado, com mais experiência e formação", através de um concurso documental perversamente limitado à "aplicação de uma grelha de critérios objectivos e quantificáveis" que visaria "seleccionar os docentes que revel[assem] ter melhores condições para o exercício das funções específicas atribuídas a esta categoria", ou seja, a professor titular.
Seguiu-se a via mais fácil em termos administrativos, do que resultou um simulacro de avaliação; critérios burocráticos exactos e uniformes, mensuração e quantificação, um processo à prova da emissão de qualquer juízo fundamentado. Em suma, um concurso sem avaliação digna desse nome, reduzido à mais elementar e desqualificante natureza contábil, em plena contradição com a retórica oficial.
Por isso a "certificação das candidaturas" se revelou mais importante do que qualquer outro procedimento e o júri, a quem competia formalmente a "avaliação dos candidatos", não chegou, de facto, a avaliá-los. Tal tarefa seria sempre supérflua, e também arriscada, face à perfeição objectivista e à lógica positivista do respectivo "formulário electrónico" de candidatura. De resto, seria sempre substantivamente impossível, tendo em conta o número dos envolvidos, os prazos estabelecidos e o carácter centralizado-desconcentrado da decisão administrativa. A escola concreta de cada docente, seja enquanto instância minimamente responsável pela avaliação e promoção, contextualizadas, dos seus professores, seja enquanto locus incontornável à produção de sentido e de juízo crítico sobre o currículo profissional de cada um, foi uma vez mais desprezada. Os critérios foram definidos fora e acima de cada escola, e totalmente a posteriori face ao desempenho objecto de pretensa avaliação. Algo do tipo: seja educador ou professor durante mais de vinte ou trinta anos que depois lhe comunicaremos aquilo que virá a ser valorizado para a sua promoção a titular.
Mas o que é mais surpreendente é que o próprio currículo profissional dos candidatos, todos de nomeação definitiva, foi subitamente amputado, por vezes em mais de duas dezenas de anos, para, por conveniência técnico-administrativa e decisão discricionária, passar a incluir apenas o período compreendido entre 1999/2000 e 2005/2006, inclusive. Apagaram tudo o resto das suas histórias e vidas profissionais, os diferentes ciclos de desenvolvimento profissional, seus investimentos, estratégias de carreira, etc.
O que esta opção significou para docentes com manifesto prestígio entre os seus pares, grande experiência e dedicação sem falhas, por vezes anos a fio detentores dos mais elevados cargos escolares (os verdadeiros professores titulares avant-la-lettre , mas já com provas dadas), que por circunstâncias diversas não desempenharam, ou desempenharam menos, cargos nos últimos anos, só está ao alcance de quem conhece as escolas sem ser apenas à distância e vistas de cima. E as circunstâncias de participação fluida a que me refiro não são apenas de ordem pessoal. Envolvem, frequentemente, decisões dos conselhos executivos e de outros órgãos escolares, práticas rotineiras e regras consuetudinárias por vezes criticáveis, critérios de oportunidade nem sempre claros e edificantes; quase todos conhecidos dos docentes experientes e, tantas vezes, objecto da sua aquiescência passiva, compreensão, solidariedade, tolerância, ou mesmo interesse activo e empenhado.
Seria altura de lhes pôr termo, dentro e fora das escolas, exigindo políticas, critérios e regras claros e transparentes, nomeadamente na designação para cargos de gestão e na atribuição de responsabilidades de coordenação pedagógica. A despolitização deste tipo de decisões só pode acarretar situações equívocas, surpresas desagradáveis e danos de diverso tipo.
Veremos se, e até que ponto, é que será possível resgatar a avaliação e promoção docentes, a realizar ordinariamente no futuro próximo, deste precedente desastroso e pouco prestigiante de provimento de professores titulares.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 171
Ano 16, Outubro 2007

Autoria:

Licínio C. Lima
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho
Licínio C. Lima
Instituto de Educação e Psicologia, Univ. do Minho

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