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O biscate ou essa terrível ânsia de viver*

Para o Biscate que foi o meu modelo de escrita.

Conhecemo-lo na rua. Magro, nem sujo nem limpo, vestido de forma juvenil como a juventude de hoje, essa que dá o aspecto de andar, a par e passo com os tempos. Na nossa juventude era diferente: andávamos de fato e gravata, penteados com brilhantina, cheios de perfume. Tudo o que as funções familiares podiam permitir, ou as posses económicas facilitavam. Aliás, quanto mais dinheiro entrava em casa, mais exibição das possibilidades do lar. Quanto mais investimento em capital, mais investimento nas pessoas do grupo doméstico: estudos para uma vida futura, profissão, carro para namorar ou passear com os amigos. Quem muito tem, muito exibe. Quem nada tem, é um biscateiro. Neste mundo, dividido em classes sociais, para além das definidas por Karl Marx, existem pelos menos duas no calão português: queque e biscate. Conceitos que abrangem, o primeiro, o ser humano não trabalhador e elegante; o segundo, define quem deve ser um peão de todo o tipo de trabalhos, porque não estudou nem ninguém da sua família se importou com os seus modos de andar, falar, ler, escrever, saber história ou outro tipo de conhecimentos. O biscate vive de trabalho em trabalho, bebe, não se importa com as suas amizades, namora todo o que pode e até tem filhos fora do matrimónio. Tanta é a sua falta de cuidado, que acaba por ser protegido por pessoas que o acarinham e que, por compaixão, acabam por amar o menino abandonado.
Foi o que aconteceu connosco. Mal o vimos na rua, reparámos no seu ar sério e composto, na sua elegante forma de ser, a sua beleza em forma física e palavras faladas, que quisemos trazê-lo para casa e investir na sua educação. O que mais chamou a nossa atenção foi a vontade que tinha de viver. Esse esforço para saber e preencher o vazio herdado na sua educação. Não foi fácil. Juntar biscates com os queques que haviam em casa, foi um esforço piramidal. Os primeiros mostravam a vontade de viver, enquanto os nossos deitavam tarde para tarde acordar e, por vezes, se estavam para aí virados, ir à instituição de ensino. Ao levar-mos o biscate para casa, existia a intenção dos nossos aprenderem com a visita. Mas, foi tudo ao contrário. O biscate não abandonou o seu desejo de viver e, no entanto, queria viver também á maneira do queque. Colaborava, é verdade, nas venturas e desventuras do lar, ao ponto de ser um apoio para os mais velhos. No entanto, um certo tipo de apreensão começou a surgir: não conseguia ser queque, pela sua origem de classe. Ainda que hoje estejam facilitados os ingressos nas escolas e noutras instituições como forma de remediar o passado desesperado em trabalhos obrigatórios, o biscate queria ser também um queque e trabalhar para si.
Infelizmente, hoje em dia, qualquer trabalho requer o 12º segundo ano. O nosso biscate tinha apenas a 4ª classe. O nosso biscate namorava tantas meninas quanto podia, fez um filho a uma delas e, sabe Deus, a quantas mais. Porque as contas, nestas matérias, estão sempre saldadas, como debato num livro a ser no Chile, brevemente.
O problema para o biscate residia no facto, de não ser queque. Sem reparar que ser queque é um pecado capital?. Normalmente remediado mais tarde, discretamente, pelas famílias. A luta contra si próprio e a sua cultura causavam-lhe depressões de todo o tamanho, até ao internamento num sítio especial, do qual saiu sarado.
A história ainda tem muito para ser contada, mas entre a falta de escola e a falta de lar, seria um livro infindável. O problema poderia ser resolvido, se os pais das crianças que falo, souberem ler entre linhas por forma a organizarem o comportamento dos seus rebentos e despoletar neles essa ânsia terrível de viver que tem o biscate.

*Retirado do livro em que trabalho, com o mesmo título.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 170
Ano 16, Agosto/Setembro 2007

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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