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A escola e a escola da vida

Sendo a escola um espaço obrigatório de passagem que importância terá para aqueles que não foram obrigados a incluí-la no seu percurso de vida?
Sendo a escola um local privilegiado de aprendizagem como aprendem aqueles que não a frequentaram, que apenas o fizeram de uma forma rudimentar ou que a deixaram há muito?
Sendo a escola um espaço essencialmente frequentado por crianças e jovens como relembram os idosos o seu tempo de escola?
Estas e outras perguntas, questões, indefinições acompanharam-me no meu percurso de investigação com idosos. Com o objectivo principal de compreender como é que o idoso(a) construía e reconstruía a sua identidade na fase final da vida, ou seja, na velhice, descobri, entre outras coisas, que a escola podendo não ser um espaço de passagem comum a todos os idosos entrevistados, foi por todos mencionada? Mais ou menos valorizada, a escola, faz parte do percurso biográfico destes idosos, que relembram a escola de há 60 ou 70 anos atrás?
Dos cinco idosos entrevistados apenas um, agora com 80 anos, não frequentou a escola, tendo, contudo, aprendido a ler e a escrever pagando cada lição com um tostão. Os restantes escolarizaram-se ficando um deles com o 2º ano incompleto, outro com o 5ºano, outro com o 7ºano e o outro atingiu o grau de licenciado. Apesar de entre os idosos entrevistados não encontrarmos nenhum analfabeto, a verdade é que a taxa de analfabetismo no nosso país sempre foi das mais elevadas da Europa (Nóvoa, 2005). Efectivamente, a grande maioria dos nossos idosos não sabe ler nem escrever o que se assume, muitas vezes, como um dos factores de exclusão social.
Ao analisar a situação social das famílias de origem destes idosos depressa verifiquei que os menos escolarizados provinham de famílias não escolarizadas ou pouco escolarizadas e que os mais escolarizados eram oriundos de famílias escolarizadas. Esta constatação reforça a ideia de que, tal como hoje, também no passado o acesso ao meio escolar e o sucesso no mesmo é e foi fortemente influenciado por fenómenos de reprodução social (Bourdieu e Passeron, 1978; Iturra, 1990; Vieira, 1998). Contudo, para todas as regras existem excepções e também nesta situação ela se verifica. O João representa a excepção neste grupo de cinco idosos. Era filho de pescadores mas a deficiência que o acompanha desde os nove meses depressa fez com que a sua mãe se consciencializasse das dificuldades de inserção e aceitação do filho numa sociedade que, vulgarmente, exclui aqueles que pela sua deficiência são diferentes. A obtenção do diploma de sétimo ano foi, naquele tempo e para aquela família, uma forma não só de inclusão mas também de ascensão social. Os contactos estabelecidos no mundo da escola permitiram que, quando todas as portas se fecharam, o João conseguisse obter emprego. Mas se neste caso a escola funcionou como um motor de inclusão social, a verdade é que para aqueles que não a frequentaram, ou pouco a frequentaram, a inclusão passou pela aquisição de outros saberes fora dos saberes da mesma. Na verdade, a experiência permite aprendizagens nos domínios psicomotor, cognitivo, afectivo e social (Cavaco, 2003). No caso dos adultos não escolarizados, ou pouco escolarizados, é o saber experiencial o instrumento mais importante de sobrevivência e de acção. Foi assim com o Mestre que, apesar da sua escassa escolaridade e de não ter frequentado nenhum curso de cerâmica, aprendeu com o trabalho que praticou nas diferentes fábricas onde passou sendo, ainda hoje, aos 80 anos, conhecido e tratado por Mestre!
De salientar ainda que a aprendizagem experiencial não acontece exclusivamente nos adultos nem exclusivamente nos não escolarizados mas em todas as fases da vida: aprendemos desde que nascemos fora e dentro da escola.
Para finalizar gostaria de destacar que apesar da escola ter sido diferentemente vivida por estes idosos e de nem sempre ter funcionado como o trampolim de sucesso para a vida futura, a verdade é que a escola foi recordada e mencionada por todos os idosos que entrevistei. Talvez por ter sido um espaço desejado que não foi alcançado, talvez por ter sido um espaço de desilusão entre as expectativas do aluno e as do professor, talvez por ter sido um espaço de socialização importante para o futuro, talvez por ter sido um espaço comum a filhos, netos e bisnetos ou, quem sabe, simplesmente porque se assume que a vida escolar faz parte do universo onde vivemos?

Referências Bibliográficas:

  • BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude (1978), A Reprodução. Elementos para Uma Teoria do Sistema de Ensino. Lisboa: Veja.
  • CAVACO, Cármen (2003), "Fora da escola também se aprende. Percursos de formação experiencial", Educação, Sociedade & Culturas, n.º 20, pg. 125-147.
  • ITURRA, Raul (1990), Fugirás à escola para trabalhar a terra. Lisboa: Escher.
  • NÓVOA, António (2005), Evidentemente: Histórias da Educação. Porto: Edições Asa.
  • VIEIRA, Ricardo (1998), Entre a Escola e o Lar. Lisboa: Fim de Século.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 170
Ano 16, Agosto/Setembro 2007

Autoria:

Sofia Cozinheiro
Enfermeira. Mestre em Educação e Diversidade Cultural
Sofia Cozinheiro
Enfermeira. Mestre em Educação e Diversidade Cultural

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