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Excelência, mobilidade social ascendente e controlo social

Exames Nacionais

"The starting point of the critique of ideology has to be full acknowledgement of the fact that it is easily possible to lie in the guise of truth."
(Slavoj Sizek (1994). Mapping Ideology. Londres: Verso.)

A exigência de introdução dos exames em todos os anos terminais dos diferentes níveis de ensino, recentemente reafirmada por Paulo Portas e retomada, como se de um jogral se tratasse, por Júdice e Fernandes, à boa maneira dos hergeanos Dupond & Dupont, tem vindo a constituir ao longo das últimas décadas uma das principais bandeiras políticas e ideológicas da direita nacional, constituindo-se como um elucidativo exemplo da centralidade que a avaliação tem vindo a assumir na época em que vivemos e que Almerindo Afonso tão bem evidenciou no último número deste jornal. E essa exigência surge-nos fundamentada por José Júdice, num artigo publicado no Público de 6 de Julho, em torno de dois eixos argumentativos fundamentais: "a defesa da democratização do ensino, da igualdade de oportunidades, da mobilidade social ascendente pela educação e a criação de uma cultura cívica de rigor" (princípios que o autor afirma estarem consignados na proposta de Paulo Portas de reintrodução dos exames em todos os anos terminais de ciclo!) e a responsabilização do que designa por 'elites de esquerda' pelo estado actual da educação e do ensino em Portugal. De acordo com este autor, "a falta de qualidade do ensino, a falta de exigência de trabalho aos alunos, a recusa da classificação que separe o trigo do joio, o funcionar para as estatísticas internacionais, sendo irrelevante a iliteracia e a falta de uma cultura de trabalho e de rigor, estão a minar Portugal, acentuando clivagens sociais baseadas na origem familiar e nos recursos económicos, impedindo o desenvolvimento económico e afectando a viabilidade de Portugal." Mas Júdice não se fica por aqui, pois chega a insinuar que a situação (no plano da mobilidade social ascendente por via da educação escolar) é hoje muito pior do que na fase final do salazarismo!
Este tipo de texto, num país com uma opinião pública que já tivesse ultrapassado a longa herança salazarista, só poderia dar à estampa num qualquer pasquim de circulação restrita e certamente financiada pelo próprio ou pelo restrito grupo de pertença. Mas a situação é tanto mais grave quanto o artigo em questão é publicado num jornal diário (ainda) de referência entre nós e, provavelmente, é lido com agrado por muitos dos que nele surgem como principais responsáveis pelo estado a que a educação chegou entre nós: os professores. Bastaria um nível médio de literacia histórica para perceber que foi a direita, em todas as formas em que tem sido capaz de se apresentar, que sempre esteve ao leme da governação do país ao longo de todo o século XX. Mesmo no pós-Abril de 1974, foi a direita que mais tempo esteve na governação do país e, no caso da educação, a sua responsabilidade é inquestionável: só de 1995 a 2001 e 2005 até à actualidade é que, de um ponto de vista formal, não foi responsável pela pasta da educação (o que não significa que as políticas educativas prosseguidas pelo PS possam ser qualificadas como de esquerda?). Portanto, mesmo que o diagnóstico realizado por Júdice e por outros ideólogos neoconservadores estivesse correcto (o que está longe de ser verdade), a única conclusão que poderíamos tirar é que os principais responsáveis por tal situação seriam aqueles que, ao longo de todo o século XX, ocuparam as cadeiras do poder. Como alguns estudos têm vindo a revelar, a mobilidade ascendente que se operou entre nós a partir da fase final do salazarismo por via da educação deve o seu relativo êxito ao esforço das famílias e à conjuntura económica global particularmente favorável que então ocorreu. Esta conveniente assumpção, como seus, de princípios que sempre rejeitaram de um modo escrupuloso, e lançar o estigma do caos educativo para cima das vítimas e daqueles que sempre estiveram na primeira linha na defesa de uma escola democrática, justa e cidadã, verdadeiramente empenhada na promoção da igualdade de oportunidades e de uma cultura de exigência, só pode ter um qualificativo: o cinismo, caracterizado por Zizek (1994) como «lying in the guise of truth». A única coisa que a direita consegue propor-nos é a reintrodução dos exames nacionais, como se tal medida tivesse o mérito intrínseco de, por si só, produzir a excelência e, ao mesmo tempo, a ascensão social, a igualdade de oportunidades e uma economia competitiva. De facto, a exacta medida para aferir se somos um país de «metecos» é o grau de recepção a este tipo de discursos que continuamente invadem o nosso quotidiano de um modo simultaneamente insidioso quanto cínico, pois os seus autores, ao contrário de muitos que os precederam, "que não sabiam isso, mas faziam-no", "sabem perfeitamente o que estão a fazer, mas fazem-no" (Zizek, 1994, p. 8).


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 170
Ano 16, Agosto/Setembro 2007

Autoria:

Manuel António Ferreira da Silva
Instituto de Educação e Psicologia da Univ. do Minho
Manuel António Ferreira da Silva
Instituto de Educação e Psicologia da Univ. do Minho

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