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Sobre a visão redutora da literacia digital

Pergunto-me ? e a pergunta não é de agora ? porque há tão pouca sensibilidade e acção (pedagógica, política, cultural) em torno da chamada literacia mediática.
Continuamos a entender que ser 'alfabetizado' é saber ler, escrever e contar, numa era em que o mundo e a vida se conjugam e representam, cada vez mais, mediante combinações de zeros e uns. Coisa aparentemente simples, essa da 'revolução digital', mas que está a transformar aceleradamente não apenas esse mesmo mundo, mas os modos como o vemos e com ele nos relacionamos.
É interessante como, apanhando a boleia da moda (a 'carona', diria a minha amiga Nilza Alves), alguns governos, industriais da informática e técnicos de vária proveniência assimilaram o conceito da 'literacia digital'. O que seria preocupação excelente, se tal conceito não fosse tão frequentemente reduzido à sua vertente tecnicista, facilmente derivável para mero adestramento (que o mercado exige, para que o hardware e os numerosos gadgets encontrem mais facilmente clientela).
Esta 'deriva tecnológica', ou apenas técnica, constitui, porém, o lado menos relevante do ponto de vista da cultura e da cidadania. Pela razão simples de que, no meu modo de ver, uma vez garantido o acesso de todos às ferramentas e às redes, a dificuldade maior não será o saber usar. Pelo menos para as gerações mais novas. Nesse terreno, as crianças e jovens dão cartas. Desinibidos face às máquinas, sem receios de explorar os seus recantos, sequiosos de dominar todos os truques, rapidamente se tornarão exímios utilizadores (ajudando, é verdade, quem saiba mais e os apoie nessa descoberta). Mas bastará isso?
A insistência numa literacia digital assim amputada poderá até não passar de biombo que não deixa espaço nem ocasião para as dimensões que de facto contam em tal processo: os porquês, os comos e os para quês.
Promover a literacia digital não deveria implicar descentramento face às tecnologias e aos artefactos, para fazer deles matéria de inquirição? (De onde vêem? Porque são assim e não assado? Que possibilidades abrem e que caminhos fecham? Para onde me levam e para onde quero eu ir?)
Promover a literacia digital não deveria ser um itinerário que me ajudasse a ler o mundo e a permanentemente indagar o sentido das coisas, das situações, das relações? A encontrar-me e a encontrar outros, num 'oceano' de sinais, de solicitações, de dados, de possibilidades, de alçapões? A distinguir e ponderar o que vale do que é lixo?
Promover a literacia digital não poderia e deveria ser uma permanente iniciação à tomada da palavra, à capacidade de escuta atenta e crítica, de resposta aos apelos próximos e distantes, de iniciativa face às questões do quotidiano e aos dramas do planeta?
Num documento de 2006, intitulado "Confronting the Challenges of Participatory Culture: Media Education for the 21st Century", Henry Jenkins, do conhecido MIT (Massachusetts Institute of Technology)*, desloca os grandes desafios da educação para os media do plano estritamente tecnológico para o das oportunidades de participação e para o das competências sociais e culturais absolutamente necessárias para viver (e não apenas sobreviver) no mundo que estamos a criar. Este é um texto que merecia ser traduzido, divulgado e debatido, porque desenvolve programaticamente não só as características, mas também os passos que poderiam ser dados para o desenvolvimento de uma literacia mediática e digital que não tenha por foco apenas uma dimensão individual, mas também comunitária. Ela exige competências técnicas, certamente. Mas supõe, pelo menos com igual dignidade, o investimento nas competências no plano da cultura da participação e das redes.
Este é um desafio (uma 'música, diria') que muitos não gostam de ouvir. Porque acham que só empata e não garante outro tipo de dividendos que não sejam essas dimensões intangíveis - para eles, bagatelas ou mesmo risco ? do crescimento e autonomização individuais e da capacidade de ser solidário e participativo na vida e na sociedade.

(*) A busca pelo título dará fácil acesso ao texto integral, disponível em vários sítios da web.


  
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Edição:

N.º 170
Ano 16, Agosto/Setembro 2007

Autoria:

Manuel Pinto
Professor da Univ. do Minho.
Manuel Pinto
Professor da Univ. do Minho.

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