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O poder incomensurável do jornalismo
Dois exemplos significativos do poder incomensurável do jornalismo (vulgo "quarto poder" ), ainda presentes no espírito do "homo telespectator" (no dizer de Lipovetsky) que quase todos nós somos, serão o "caso Sócrates" e o "caso Madeleine", cujo tratamento, por alguns dos jornalistas envolvidos, fornece abundante matéria de reflexão aos estudantes de Comunicação Social, quer os mova um edificante sentido de missão, quer um prosaico desejo de se tornarem famosos.
Não obstante a diferença dos motivos que projectaram aqueles dois casos no espaço público, - um, inquiritorial, por denúncia de alegado favorecimento académico, outro, humanitário, pela pressão exercida sobre a investigação do rapto da criança inglesa no Algarve ? ambos nos remetem para as considerações de notáveis cientistas sociais sobre o poder que o jornalismo tem de "invadir todos os cantos e recantos da nossa consciência", pois "sendo a imprensa e os meios de comunicação muito mais do que um instrumento técnico e do que uma empresa comercial", que consegue "gerar uma temporalidade de instantâneo niveladora", ? como observa George Steiner no seu livro "Presenças Reais" (1993) ? esse poder acaba por se autonomizar como uma "midiocracia"que se reclama da liberdade de, no mesmo momento, noticiar, inquirir e julgar.
Vê-se aquele nivelamento na generalidade dos leitores, ouvintes e telespectadores, igualmente sujeitos a uma "fenomenologia radical do jornalístico (...) em certo sentido metafísica", ? observa também Steiner ? porque, a certa altura, o real já não precisa do facto para ser notícia: basta a encenação da suspeita ou do indício visionados pelo jornalista, ideológica ou emocionalmente envolvido com o evento, para que o suposto ou o desejado se torne num real induzido. E assim o móbil inicial da informação, denúncia ou descoberta se liquefaz em projecções virtuais que, alimentando igualmente a apetência do jornalista e do auditório, confundem na mesma vontade o profissional, a empresa, a mensagem e o público, todos induzidos ? no dizer de Mc Luhan ? "a completar a cada instante os brancos da trama numa participação social convulsiva, profundamente cinética e táctil."
Quando se alimenta de impressões efémeras, o jornalista não se sente coagido a respeitar princípios de conduta pré-estabelecidos, porque, vivendo do e para o instantâneo, numa temporalidade meta-ética e meta-deontológica, o seu primeiro (e eventualmente único) objectivo é produzir o impacte de que também nos fala Steiner: "A visão jornalística confere a cada acontecimento, a cada situação individual ou social, um máximo de impacte (...) A novidade política e o circo, os saltos da ciência e do atleta, o apocalipse e a indigestão, são tratados com a mesma ênfase." E quanto mais prolongada, mais eficaz, para que "da extrema beleza ou do terror extremo no fim do dia não fiquem apenas farrapos" e a expectativa se mantenha intacta à espera das notícias do dia seguinte. Então acontece que a informação ? citando agora Jean Baudrillard ("Simulacros e Simulação", 1991) - "em vez de comunicar, esgota-se na encenação; em vez de produzir sentido, esgota-se na encenação do sentido, (e) assim, a informação dissolve o sentido e dissolve o social numa espécie de nebulosa votada, não de todo a um aumento de inovação, mas, muito pelo contrário, à entropia total."
Centrando-se o "caso Sócrates" numa acusação lançada sobre uma figura cimeira da política nacional, a apetência pelo escândalo (poucos admitirão, como Wittgenstein, que "quando filosofamos temos que mergulhar no caos primordial e que nos sentir nele como em nossa casa") dará lugar à expectativa de que à denúncia se siga um interrogatório e, em última instância, se o "confitente" se mostrar "negativo e pertinaz", um "auto-de-fé", com o "exposto" já visionado de vela nas mãos e sambenito penitencial; e se fosse outro o tempo, com o grande público medieval exultando na praça:"Façam-lhe a barba!"
Hoje, numa sociedade de reflexos condicionados pela "mensagem" jornalística que actua como as campainhas de Pavlov, e para a qual o erro só existe quando é publicitado, a ética não tem um valor substantivo e a verdade e a justiça só mobilizam o colectivo se os resultados forem rápidos e empolgantes - o grande público, sem tempo nem vocação para cogitações metafísicas, delega na comunicação social a pronúncia da última palavra, seja ela qual for. Avocando agora o "caso Casa Pia", esse público estará predisposto até para aceitar, como ironizou Georges Braque, que "as provas cansam a verdade."
No caso da criancinha inglesa raptada, a necessidade "empresarial" de manter o público "agarrado" ("o média é a mensagem", repetiria Mc Luhan) levou à ânsia de ver a suspeição convertida em facto, para que o "impacte" fosse rápido e total - e o jornalista, perante a confirmação do seu arrojo divinatório e sentencioso, pudesse justificadamente exultar: " Eis o culpado que eu antevi!"
A lição didáctico-pedagógica que se extrai destes e de muitos outros casos igualmente apelativos é clara: não deve estar à mercê do jornalista que, por défice de ética e lucidez, não controla as pulsões narcisistas, o poder incomensurável de, com uma palavra errada ou uma imagem distorcida, imolar um homem e abalar o mundo. Sirva de argumento vivaz o que o jornalismo fez da invasão do Iraque, do discurso do Papa em Regensburg e da caricatura de Maomé.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 169
Ano 16, Julho 2007

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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