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É urgente pensar em novas alternativas ao capitalismo

A escola como meio de construção de uma nova sociedade

Dave Hill é professor de políticas educativas na University College de Northampton, Inglaterra. É também director do Instituto de Investigação de Políticas Educativas e editor do "Journal for Critical Education Policy Studies".
Mike Cole é professor na Bishop Grosseteste University College, em Lincoln, Inglaterra, e investigador na área da educação e igualdade. Na sequência do seu trabalho, lançou recentemente o livro "Introduction to World Systems - Global Imperial Capitalism or International Socialist Equality: Issues and Implications for Education".
A Página aproveitou a vinda a Portugal destes dois académicos para uma entrevista onde se questionam algumas das dimensões políticas do Marxismo e se abordam perspectivas possíveis de aplicação da teoria marxista no sector educativo.

Os regimes de inspiração marxista, leninista e maoísta auto-intitularam-se socialistas e comunistas. Essa designação justifica-se?

Mike Cole: Eu oponho-me à maioria dos desenvolvimentos que ocorreram no mundo sob a égide do marxismo, nomeadamente nos países do leste europeu. Essas sociedades não eram, de facto, verdadeiras sociedades democráticas socialistas tal como Marx preconizou. Apesar disso, tem de reconhecer-se a existência de inúmeros factores positivos dos quais se pode salientar o pleno emprego, a habitação e a saúde para todos, a promoção dos direitos das mulheres, etc.
Penso que Cuba é um caso diferente. Tive oportunidade de visitar o país por três vezes e da última vez que o fiz, como participante de uma conferência, tive oportunidade de falar com muitas pessoas e pude constatar que, apesar de existirem alguns aspectos negativos ? nomeadamente o facto de o partido comunista deter um poder imenso ? puseram-se em prática diversos processos democráticos no país que as pessoas desconhecem ou dos quais não se fala.
Mais recentemente estive na Venezuela, como professor convidado da Universidade de Caracas, e fiquei positivamente surpreendido com os desenvolvimentos que ali estão a ocorrer. Penso mesmo que este país constitui possivelmente um modelo para aquilo que se poderá designar como "socialismo do século XXI".

De que forma lidou Marx na sua análise com a questão da liberdade individual?

Mike Cole: Penso que o marxismo, concretizado no socialismo democrático, defende na sua essência a garantia das liberdades individuais. Não acho que o verdadeiro socialismo democrático defenda a conformidade do constrangimento individual. Sob o capitalismo, pelo contrário, a energia criativa da classe trabalhadora é completamente restringida.
Os marxistas serão sempre confrontados com esta questão. Infelizmente, as pessoas relacionam o Marxismo com o sistema político que foi posto em prática nos países do leste europeu. Margareth Thatcher, por exemplo, foi muito hábil a explorar esse tipo de argumentação, comparando o socialismo à União Soviética e aplicando essa analogia ao Partido Trabalhista Britânico. Foi esse tipo de fórmula que trouxe Tony Blair, um neoliberal, à liderança do Partido Trabalhista.

Dave Hill: Certa vez, quando regressava de uma viagem aos Estados Unidos e reencontrei a minha neta Anna, de nove anos, disse-lhe que ela iria adorar a América porque lá existe muita liberdade de escolha. Expliquei-lhe que as geladarias têm mais de vinte sabores disponíveis e que as lojas de doces têm dezenas de guloseimas diferentes com variadíssimos tipos de recheios. No entanto, disse-lhe eu, quando votas nas eleições tens apenas duas escolhas possíveis, isto é, na prática não tens escolha?
Hoje em dia estamos confrontados com uma formatação em termos ideológicos. Para alguém que escreveu há cerca de 160 anos e não podia ter ideia de como as suas ideias ou a sociedade iriam evoluir, o manifesto comunista foi surpreendentemente visionário em relação ao rumo que o capitalismo e a sociedade capitalista iriam tomar.
O marxismo é uma filosofia desenvolvimentista viva e em permanente progresso, e é essencial que aprendamos com as práticas de alguns regimes socialistas e marxistas. Não podemos simplesmente culpar Marx pelos desvios que ocorreram.

Considera que pode falar-se hoje da existência de um neo-marxismo?

Dave Hill: O Marxismo evoluiu, e isso reflecte-se na orientação das organizações políticas de inspiração marxista. Hoje em dia, na Europa ocidental, pode dizer-se que o trotskismo é a principal corrente no seio dessas organizações, dando mais atenção a temas como a raça, o género, a sexualidade, a deficiência, o ambiente, etc. Há trinta anos acho que não é exagerado dizer que os partidos comunistas eram essencialmente organizações de base proletária, branca e um tanto ou quanto machistas. Em termos teóricos e de educação marxista, o neo-marxismo tornou-se, de facto, na forma dominante de marxismo.

Que contributos pode dar a teoria marxista para a desconstrução do neoliberalismo?

Dave Hill: Eu dediquei boa parte da minha vida àquilo a que a maioria dos trabalhadores intelectuais marxistas se dedicam: a analisar as questões que nos rodeiam, constatando a depredação destrutiva do neoliberalismo, que mais não é do que uma forma extrema de capitalismo que exacerba desigualdades entre países e no interior dos próprios países; a sentir ira pelos impactos que ele tem na classe trabalhadora ? e nas famílias da minha comunidade em particular, que têm de trabalhar mais arduamente para garantir um nível de vida básico (e que têm a liberdade de escolher entre cinquenta tipos de margarina mas que não têm dinheiro, entre muitas outras coisas, para passarem uns dias de férias); e a procurar estabelecer bases para um programa baseado na crítica marxista do neoliberalismo e nos princípios marxistas de democracia, igualdade e controlo colectivo do sector produtivo e dos serviços públicos em detrimento do consumo privado.

Mike Cole: Eu cresci num tempo em que o capitalismo era relativamente benigno. Aquilo a que assisto hoje, e que se manifesta em todos os aspectos da minha vida, é que foi posto em prática uma forma muito selvagem de capitalismo, cujo único objectivo é a obtenção de lucro e uma legislação laboral cada vez mais flexível.
O futuro primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, afirmou em 2004 que era necessário começar a ensinar a cultura empresarial nas escolas. Coincidência ou não, foi introduzida em algumas escolas, a título experimental, uma disciplina chamada estudos empresariais que brevemente será alargada a todo o ensino secundário. Alguém directamente envolvido nesta iniciativa ? não sei precisar quem ? disse também que o objectivo é ensinar os valores e as atitudes indispensáveis às necessidades modernas do mundo do trabalho.

No mesmo sentido pergunto: o que podem os agentes educativos, e todos aqueles que se interessam pela área da educação em geral, retirar do pensamento marxista para a sua prática profissional?

Dave Hill: Todos os professores, independentemente do nível de ensino em que estão colocados, podem trabalhar no sentido de quebrar as correntes da conformidade conservadora que a educação capitalista está a tentar impor, nomeadamente consciencializando as crianças e os jovens para diferentes passados, presentes e futuros que servem não os interesses de libertação humanos mas os interesses da economia capitalista.

Mike Cole: Penso que a teoria marxista pode ajudar os professores a mostrar aos seus alunos que existem modos alternativos de conduzir os destinos do mundo, que houve tentativas de pô-los em prática em inúmeros países, que por diversas razões essas tentativas falharam, mas que é urgente pensar em novas alternativas ao capitalismo.
Mais concretamente, podemos olhar para o exemplo de outros países, dos quais assinalaria Cuba e Venezuela, vendo que tipo de sociedade o sistema educativo cubano produziu, por exemplo, e analisar de que forma ele difere da sociedade portuguesa. Ou a Venezuela, onde uma nova forma de gerir o mundo tem vindo a ser discutida, aquilo a que eles chamam, como já atrás referi, o "socialismo para o século XXI".

De que forma é possível introduzir esses conteúdos no plano curricular?

Mike Cole: Não sei muito sobre o currículo nacional português, mas na Grã-Bretanha existem uma série de espaços no interior do currículo nacional onde as crianças estão a ser incentivadas a questionar as noções de democracia, a olhar para sistemas alternativos, a estabelecer contacto com aquilo que se poderá designar como uma visão global de outras escolas, em outros países. Esta é uma das formas através da qual o Marxismo, através do seu modelo questionador, pode influenciar aquilo que é actualmente ensinado nas escolas.
O capitalismo não está apenas a destruir o meio ambiente e as relações de trabalho, está a desumanizar-nos. Nesse sentido, penso que o Marxismo pode mostrar aos jovens novas formas de sociedade onde as pessoas são valorizadas por aquilo que são e não apenas como meios de produzir lucro.

Existe hoje uma espécie de doutrina de eficiência social que condiciona de forma crescente os objectivos educacionais. Concorda com esta ideia?

Dave Hill: Sim, de certa forma há uma espécie de reconfiguração pessoal que o capitalismo procura assegurar no sentido de criar trabalhadores eficientes, que adquiram conceitos de eficiência pessoal nas suas vidas, sempre na perspectiva de um objectivo produtivo. Nesta perspectiva, os objectivos educativos acabam por ser muito semelhantes aos da economia, estando a suprimir-se aspectos importantes do desenvolvimento pessoal que a escola supostamente deveria assegurar.

Nesse sentido, pode encontrar-se no Marxismo uma ferramenta para a desconstrução desta e de outras doutrinas que condicionam a construção do tecido social?

Mike Cole: Em Inglaterra costumamos referir-nos à existência de um processo de escolarização mais do que a um processo educativo, através do qual se pretende desenvolver alunos adaptáveis e eficientes para a economia capitalista, com as atitudes certas, os valores certos, as crenças certas.
Nesse sentido, penso que o Marxismo ajuda-nos a questionar esse tipo de sociedade, rejeitando essa formatação e educando as pessoas para uma compreensão global da vida, desenvolvendo o mais possível os atributos da nossa personalidade, e, decisivamente, abrindo os conteúdos curriculares de forma que se possa encontrar formas alternativas de gerir o mundo. E isto pode ser feito em todo o tipo de disciplinas.
O currículo nacional inglês está a tornar-se mais receptivo a abordar assuntos como a sexualidade, a etnicidade ou a deficiência, mas ainda está pouco aberto a temas como as classes sociais e o capitalismo, porque, no fundo, ameaça o próprio sistema que gere as escolas. Neste sentido, o Marxismo pode ser uma forma de abrir novas perspectivas às pessoas; olhar, tal como Marx referiu, para além da superfície.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 169
Ano 16, Julho 2007

Autoria:

Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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