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Desporto: geometria de equívocos
Acerca de Heidegger, George Steiner, em livro muito citado, escreveu: "Precisamos de dar mais assistência ao pensamento". É que, conforme lucidamente avisa uma das personagens de Robert Musil, "é muito simples ter força para agir e muito difícil encontrar um sentido para a acção" (O Homem sem Qualidades, 3º tomo, Livros do Brasil). Ora, sentido para a acção desportiva é o que José Manuel Constantino antigo presidente da Confederação do Desporto de Portugal e do Instituto do Desporto de Portugal) manifesta procurar, através do pensamento crítico e olhando para o desporto como um valor. O seu livro, que vem de publicar-se, Desporto: Geometria de Equívocos, assim o atesta. Mas é o desporto um valor? Na escola é-o, de modo indiscutível. "A evolução desportiva será sempre proporcional ao que for a evolução físico-motora da sua população infanto-juvenil, nisto compreendendo a sua literacia motora, o desenvolvimento das capacidades e qualidades físicas gerais, em suma, a elevação da condição física das crianças e dos jovens, em idade escolar"(p. 22). Ao nível da saúde, o movimento intencional da transcendência (ou superação), quero eu dizer: a motricidade humana, é um dos antídotos contra o sedentarismo. "Os estilos de vida saudáveis ganham espaço na agenda política e cultural das sociedades contemporâneas. A promoção das actividades físicas e desportivas é neste contexto que se tem de situar, tendo presente que a saúde pode ser treinada e por isso melhorada e aumentada"(p. 24).
No atinente ao desporto feminino, José Manuel Constantino, como homem culto que é, não deixou de terçar armas por ele, numa liça que já parece anacrónica. No entanto, "o direito ao desporto, por parte das mulheres, é um direito tardio e que não acompanhou os restantes direitos cívicos e políticos (...). O acesso da mulher ao desporto integra-se na perspectiva mais geral da igualdade de direitos de cidadania"(p. 28). E a mulher subiu ao tablado da História, durante séculos e séculos, como factor de pecado e ajoujada ao peso doutros preconceitos a pedir ablação. "O desporto e os cidadãos portadores de deficiência" é um tema com bem actuais cintilações. É que também, mesmo em estilo vernáculo, se lançou sobre o chamado "deficiente" (deficientes somos nós todos) o que de mais obsoleto e arcaico engendrou a mente humana. Ora, o desporto diz ao "deficiente" que é um cidadão, com iguais direitos e deveres; valoriza-lhe a auto-estima; potencia-lhe as qualidades físicas e uma sonora visibilidade social ? como negar que só pessoas de estreita compreensão não entenderão que o desporto deve ser uma das traduções práticas de uma sociedade-para-todos? O desporto e a inclusão social; o desporto e o direito; o desporto e a cidade; o desporto e os espaços; o desporto e a autarquia; o desporto e a universidade; o desporto e os eventos; o desporto e o espectáculo desportivo; o desporto e a violência; o desporto e a dopagem; o desporto e a comunicação social; o desporto e a liderança das organizações; o desporto e os novos poderes; o desporto e as identidades locais; o desporto e a Europa; o desporto e a política; o desporto e o Estado; o desporto e o País ? eis aí os temas de que este livro também se ocupa, em curiosas e sensatas sínteses e não como um fundibulário, arrumando com as sete pedras de David à testa de qualquer intrometido.
O respeitado neurologista Oliver Sacks, numa das suas histórias clínicas, conta-nos que conheceu um paciente que nunca se relacionava, por exemplo, com uma fotografia em toda a sua dimensão, não alcançando por isso o que era uma cena ou uma paisagem. Tratava-se de uma gnose formal e não de uma gnose pessoal. De uma vez, o médico Oliver Sacks questionou-o, mostrando-lhe uma luva: "O que é isto?". Resposta pronta: "É uma superfície contínua, dobrada sobre si mesma". A relação cognitiva do paciente era formal e abstracta, com perda de capacidade emocional e concreta e portanto incapaz de discernir uma realidade global. Nas minhas aulas para alunos de uma licenciatura em desporto, eu relembro por vezes o que nos conta o Dr. Oliver Sacks. E acrescento: "O conhecimento teórico que vocês têm do desporto é, quase sempre, demasiado categórico e abstracto. Meus amigos, só se sabe o que se vive". José Manuel Constantino impõe-se ao nosso respeito e admiração, precisamente porque já viveu "in loco", e nas várias dimensões em que este fenómeno se desdobra, o desporto. E fê-lo com espírito crítico, clara perceptividade, atitude compreensiva e... cultura!
Repito: e cultura! Quando ele escreve: "O desenvolvimento desportivo em Portugal necessita da convergência de três eixos estratégicos fundamentais: o da promoção desportiva; o da orientação desportiva; o da selecção desportiva ? não apresenta as suas conclusões como produto de um requintado artifício livresco, mas como estudioso atento que faz suas as palavras de Adorno, na Minima Moralia: "importa ter conhecimentos que não sejam absolutamente exactos e invulneráveis, mas tais que diante deles se levante o problema da sua exactidão". De facto, há quem seja tão exacto que não consegue pensar! Por isso, José Manuel Constantino assinala que "a nossa capacidade tem-se esgotado no diagnóstico dos problemas", dado que as análises feitas não ultrapassam o lugar-comum. "São listagens de problemas, não são soluções, nem se identificam prioridades" (p. 110). Desporto: Geometria de Equívocos, de José Manuel Constantino, deverá transformar-se num vade mecum de utilização frequente pelos técnicos, dirigentes e políticos que, com paciência beneditina, trabalham, na "coisa desportiva". Os principais problemas que tolhem os movimentos do nosso desporto são referenciados neste livro, com saber e sabedoria. Está de parabéns José Manuel Constantino! Está de parabéns o desporto português!

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 169
Ano 16, Julho 2007

Autoria:

Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa
Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa

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