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Um entre muitos
O calor começa a apertar na nossa sala de primeiro ano, exposta para Sul. O calor do Sol e o calor da pesquisa e da descoberta. Ter o Sol tantas horas virado para nós, permitiu observá-lo, com um relógio de sol que construímos. Permitiu ver como, semana após semana, sempre na mesma hora, a sombra do gnómon fica cada vez mais curta. E formular hipóteses, deduzir ideias, procurar o que outros sabem sobre o fenómeno. Um pequeno grupo trata do assunto, enquanto outros escolheram estudar outros temas: a fauna e a flora da região onde a turma passou três dias a fazer "trabalho de campo", a comparação entre as casas do bairro e as casas de lá, uma pesquisa acerca dos castelos medievais que fomos encontrando na viagem.
A partir de textos simples, de pesquisas conduzidas pelo professor, todos desenharam leram e escreveram.
E escreveram mais.
Desde fins de Dezembro até fins de Maio, em crescendo, vinte crianças de seis ou sete anos produziram perto de setecentos textos, escritos à mão ou no computador. Textos com palavras suas, que lêem uns aos outros, todos os dias, no momento de leitura. Todos lêem os seus próprios textos, as suas próprias palavras de referência, todos são capazes de ler textos dos colegas. Muitos lêem textos externos ao grupo: histórias, contos de fada, textos simples sobre o assunto em estudo.
Todo o grupo lê, todo o grupo escreve. Não há duas crianças que leiam da mesma maneira, que escrevam as mesmas coisas com a mesma facilidade. Todos trabalham os seus interesses e é interesse de todos saber o que cada um faz. Discute-se, informa-se, explicita-se diariamente. Cada um sabe de si o que sabe, todos sabem o saber disponível de cada um dos outros, para trabalho a pares ou em pequeno grupo. Cada um encontra-se na diversidade de estratégias, de materiais e de assuntos para tratar.
Entre nós, crianças e adulto, procuramos estabelecer uma comunidade educativa de alunos e um professor. O ofício de aluno, respectivamente de professor, está claramente definido: trabalhar para produzir informação ou reproduzir conhecimento partilhando com cada um processos e produtos. Existe uma vontade explícita de saber mais e melhor, para trocarmos e discutirmos mais e melhor.
O ofício do professor tem ainda outra vertente: ajudar as crianças para que percebam que o seu ofício de aluno não se reduz a prestador de respostas em provas de classificação.
Queremos evitar que as crianças entendam a escola como se de um concurso televisivo se tratasse: com prémios para os que melhor respondem ou mais agradem o júri e a exclusão dos outros. Mas queremos evitar também que se tornem vítimas dos muitos adultos que a entendem assim.
Que aprendam a se defender destes adultos que vivem para quadros de excelência, que vêem dicotomias em vez de diversificação, que confundem aprendizagem pessoal com assunção egoísta.
Que aprendam a resistir ao folclore escolar que transforma a estrela ou o herói em objecto de admiração beata e obrigatória, que reduz a rituais festivos, de consumo imediato, efemérides que a comunidade nacional ou internacional lançaram para provocar um debate sério acerca de problemas sérios, como acontece anualmente no dia da criança.
Não é fácil defender-se do ritual escolar instituído que mantém crianças e professores reféns como consumidores de conteúdos e factos. Muito menos quando os adultos, que proporcionaram este modelo de escola já marcaram os nossos alunos como "na maioria, não-luso, de meio sócio-económico desfavorável, vivendo em bairro problemático".
Não é fácil não cair na armadilha de quem utiliza este jargão e continua a promover concursos do tipo "o melhor do ano", "o melhor da turma", "o melhor da profissão".
Não é fácil neste contexto, recusar-se a ser o gato de apartamento ignorante de que fala Georges Glaeser. Por isso, obstinadamente, aproveitemos o contexto que a escola a pesar de tudo nos dá, para ler, escrever, estudar, pesquisar, discutir e aprender o mundo e intervir nele, directamente, como comunidade, cada um 'um entre muitos', não para ganhar prémios, mas para reivindicar o direito de se inscrever na história.

  
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Edição:

N.º 168
Ano 16, Junho 2007

Autoria:

Pascal Paulus
Escola Básica Amélia Vieira Luís, Outurela
Pascal Paulus
Escola Básica Amélia Vieira Luís, Outurela

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