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A esperança é um substantivo feminino

"Diferenças são parecenças,
muito mais do que tu pensas"
(Refrão de uma canção infantil anti-xenófoba e anti-racista)

Assim como esse fragmento de uma canção popular, vou tentando compreender por que usamos algumas de nossas palavras, que mesmo tendo sua escrita no feminino e no masculino são usadas apenas no masculino, para nos referirmos às mulheres. Não são palavras que os gramáticos chamam "comum-de-dois", mas outras que, tendo as duas possibilidades, em contextos onde a imensa maioria das pessoas é do gênero feminino, insistimos em usar no masculino. Sei que não terminarei o bordado dessas linhas, mas tentarei encontrar um caminho para dizer o que tanto tempo ficou escondido sorrateiramente em tantas toalhas e diários.
Por que será que numa turma de formação de professoras onde só temos "alunas" continuamos a dizer: "os alunos da formação de professores". Por falar em professores, por que continuamos a falar: "Vamos para reunião de professores", ou "Vamos falar com os professores?". Também temos as reuniões de "pais", por que, se a maioria que se ocupa dessas convocações escolares são "mães"? Nas faculdades em cursos como o de Medicina temos uma grande maioria de mulheres, mas continuamos dizendo "vou ao médico", e não nos referimos à médica. Em nome da norma culta da língua, talvez estejamos reforçando uma dominação nefasta.
O uso de uma palavra no feminino no título faz parte de uma decisão política. Deriva do fato de a memória do que aprendemos, reunida nessas linhas, ser de uma formação impregnada de tantos "masculinos". No entanto, não se trata de uma "cartilha do politicamente correto" mas de uma opção derivada da consciência de que, historicamente, às mulheres, em especial às das camadas populares, foi negada a educação. A elas cabia trabalhar para sobreviver, procriar e cuidar dos filhos. Mesmo assim, as astúcias de quem não tinha voz foi mudando a história com as resistências possíveis. Todavia, o uso das palavras continua generalizando e universalizando a cultura masculina.
Não uso a palavra "gênero" porque esta palavra, segundo algumas pesquisas, surgiu para substituir o termo "Mulher" num espaçotempo em que as lutas feministas tentavam desnaturalizar a condição da mulher na sociedade. Também, quando usamos a palavra gênero, parece que mais uma vez o "poder" está em jogo e novamente utilizamos uma referência masculina.
Nossos discursos uniformizados, em nossos textos, conversas, apresentações etc., mostram-se incapazes de dar conta da diversidade e complexidade das relações que acontecem cotidianamente. Esses discursos vão formando e perpetuando as culturas dominantes. Outra conseqüência é a impressão de que as diferenças generalizadas escondem as "parecenças" que permitem outro olhar sobre os conflitos que provocam uma violência simbólica na qual a matéria impressa teve papel preponderante na história da cultura. Peter Burke, que sempre foi fascinado pelas culturas latinas, professor de História da Cultura na Universidade de Cambridge, nos lembra que as culturas são heterogêneas e diferentes grupos reagem de modo diverso a encontros culturais. No entanto, na nova ordem cultural ditada pela globalização, na qual o texto escrito se processa em celulares, internet e que não barra o avanço da rede tecnológica, temos que tomar um pouco mais de cuidado para não estarmos reforçando desigualdades. Ao invés de começarmos a evidenciar as diferenças precisamos evidenciar as "parecenças" da esperança feminina que passa a reinar nesses novos tempos: o anúncio de que na história da humanidade, pela primeira vez, a igualdade, a liberdade e a cidadania estão aparecendo em grandes e pequenos debates do nosso cotidiano e nossos textos vão escrevendo mais substantivos femininos.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 168
Ano 16, Junho 2007

Autoria:

Solange Castellano Fernandes Monteiro
Univ. do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Brasil
Solange Castellano Fernandes Monteiro
Univ. do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Brasil

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