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Sabotagem e Fracasso Educacional

A Vida do autodidata Maurício Tragtenberg (1) merece um filme. Fico intrigado em saber como é que o Maurício Tragtenberg conseguiu fazer com que alunos de quinta série lessem Fernando Azevedo(2) para discutir questões pedagógicas, segundo consta de um dos seus memoriais. È certo que a escola da década de 60 que ele conheceu não é a de hoje, nem a paisagem humana (televisão, Internet etc), nem os professores do Estado possuem a formação e, talvez, o carisma que ele possuía, mas a sabotagem dos alunos de hoje parece demasiadamente forte se pensarmos neste tipo de milagre. Nem os universitários lêem Fernando Azevedo, imaginem, então, os alunos com 10 anos de idade!
Descobriu-se, sem grandes novidades, que nenhuma escola estadual da cidade de São Paulo alcançou a média de 50 por cento de acertos quando da ultima avaliação coletiva efetuada pelo Estado. Todas elas ficaram abaixo dos 42 acertos de média numa prova com 100 questões tendo as mais retardatárias acertado apenas trinta. Também, no IDEB, (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), uma avaliação nacional, das 4.349 cidades avaliadas quanto ao ensino de 1° à 4° séries, 4.112 tiveram nota inferior a cinco, num total de 10. Para o ensino de 5° à 8° séries de 2.467 cidades, 2.453 ficaram reprovadas, não atingindo a nota regular 5. Numa escala de zero a dez, o Brasil tem hoje um IDEB médio de 3,8 na primeira fase do ensino fundamental (1ª a 4ª séries), de 3,5 na segunda (5ª a 8ª séries) e 3,4 no ensino médio. Apenas 225 cidades tiveram nota entre 5 e 6, portanto, aprovadas (Folha de São Paulo, 26/04/2007).
Essa mais nova confirmação da catástrofe educacional das escolas estatais despertou, como sempre, uma série de escritos e proclamações na mídia sobre o assunto. De todas as avaliações e análises que eu li, inclusive a oficial dada pela secretária de educação do Estado de São Paulo, nenhuma leva em conta a possibilidade de que os alunos estejam a sabotar o ensino. Entretanto, por mais que se some todas as lacunas resultantes da pobreza da escola estatal, a situação não seria tão precária se os alunos não se recusassem a estudar sob ordem professoral, uma vez que nem pensam em fazê-lo por conta própria. Outra coisa interessante a mencionar é que o fracasso educacional é um monstro para o qual na há nenhuma paternidade. Quando se trata de educação caímos num vazio onde se apresentam algumas explicações, mas nenhum nome, nenhum culpado. De ministros e auxiliares, passando por diretores, coordenadores e demais chefias aos proletarizados e precarizados professores e até alunos e pais, ou a comunidade, ninguém mostra a face. O fracasso educacional, dessa forma, assemelha-se àquelas traquinagens de criança que todos vêem, mas ninguém assume.
A catástrofe educacional é, primeiramente, sistematicamente patrocinada pelo Estado. Há uma correlação entre número de alunos, número de aprovados e taxa de desistência na qual as escolas que possuem mais alunos; possuem um menor número de repetência e de desistência, acabam recebendo uma maior verba proveniente do Estado, tal qual na penitenciária, onde quanto mais abarrotada a instituição, maior é a verba destinada aos diretores. Dessa forma, as chefias escolares procuram não reprovar nenhum aluno ? mesmo os que sumiram da escola ? e procuram manter a unidade o mais cheia possível.
A educação destinada à população pobre é, como já o dizia o velho Tragtenberg, sem meias palavras, resumida a professor, giz e cuspe. Temos então um complexo arquitetônico caracterizado por muros e mais muros, grades e mais grades, explicitando o prioritário papel penitenciário das escolas.
Sem livros, discos, televisores, aparelhos audiovisuais, bibliotecas, eventos artísticos e culturais; com uma clientela incapaz de comprar o material didático necessário, muitas vezes sem professores e em geral com professores mal qualificados, com salas de aula abarrotadas com 40 ou mais alunos e ainda com algumas unidades feitas de lata, a escola oferecida pelo Estado deixa pouca coisa que interesse aos alunos: as quadras, para as quermesses e jogos esportivos; a merenda, para alimentação; os becos, para namoros; e os alunos, para as amizades. Talvez isso não assuste muito quando se sabe, por exemplo, que há no país muitas escolas sem acesso a energia elétrica.
Da parte do professor da rede estatal a situação não é menos terrível. Além de ser obrigado a trabalhar sem o menor suporte material, - a escola não oferece nem canetas, nem livros - ele se vê imerso num mercado de trabalho extremamente precário: com baixos salários, carga de trabalho incompatível com um processo de permanente autoformação; obrigado a se deslocar entre várias escolas e com distâncias variáveis; é tido como suspeito pela burocracia e chefia escolar; é cercado pela falta de solidariedade e extremo individualismo dos professores ? todos bravos concorrentes das migalhas disponíveis, e ainda sofre a completa sabotagem do ensino efetuada pelos alunos, sendo, neste processo, freqüentemente alvo de deboche e desrespeito, quando não de violência.
Uma vez que a educação é, para ele, uma forma de receber salários, de sobreviver, também não se interessa pelas condições nas quais se encontra a escola, o conteúdo que é ministrado e o futuro trágico, de antemão percebido, que os alunos terão. A categoria dos professores é uma das mais alienadas, onde, claramente, os fins sociais da educação se perdem em detrimento dos meios. Entretanto, não há texto sobre educação, ou fala professoral, que deixe de afirmar uma tal formação cidadã, para a democracia, com vistas à participação e aquela fraseologia toda que qualquer aluno que pretenda prestar o vestibular já sabe que não pode esquecer. Não é conhecida, em toda a história da educação brasileira, casos de mobilização massiva de professores por melhores condições estruturais de trabalho. Um arguto aluno soube observar que os professores não se mobilizam pela melhoria da merenda, contra a falta de cadeiras, de computadores e acesso à Internet, contra a violência entre alunos e outros mais. Também na Universidade poucos se lembram que há alunos sem moradia, sem dinheiro para os textos, a condução, a alimentação; que nem todos podem pagar cursos de língua.
Os professores são, também, generalizadamente adeptos da cultura inútil, onde grassam revistas masculinas e femininas, programas de tv, futebol, shopping center, indústria cinematográfica hollywoodiana e fonográfica pop. Embora seja quase raro saber-se de excursões a museus e centros culturais, praticamente não há escolas onde não se realizem excursões a parques temáticos como Play Center, Hopi-Hari etc, ou aos cinemas, oferecendo uma platéia ao novo detrito cultural do momento.
A chamada comunidade alheia-se do processo. A escola é, para a generalidade dos pais, um lugar onde se deposita o filho - livrando-se deles por algumas horas. A principal participação da comunidade, não só agora que se começou a abrir oficialmente as escolas às pessoas do bairro, fica circunscrita `as atividades esportivas e lúdicas: futebol, basquete, vôlei, video-game, RPG, quermesses, festas.
O sindicato participa com o que sabe fazer de melhor: construir frases. De um lado temos um palavrório há muito já conhecido, de outro uma ineficácia e imobilismo proposital nas ações. Com as verbas que possui, o sindicato poderia levar adiante uma larga campanha de luta em prol da educação. Poderia organizar e impulsionar encontros regionais entre os professores para discutir suas questões e apontar ações práticas; debater com a comunidade; realizar pesquisas sobre o cotidiano escolar, sobre as lutas desenvolvidas e estratégias de ação, enfim, impulsionar uma mobilização social. Mas o sindicato atém-se à gestão das colônias de férias, dos prédios de sua propriedade, organiza bailes no dia dos professores, shows no dia da Festa do Trabalho, e uma burocrática campanha por esta ou aquela porcentagem em datas chave.
Da parte dos alunos a sabotagem é reforçada e assume as mais distintas formas: eles podem tanto enlouquecer o professor como simplesmente fazer que não ouvem ? ou não ouvir mesmo ? o que ele diz e, portanto, não acatar nenhuma de suas decisões. O professor, quando não se vê atacado de todos os lados, inclusive com palavras agressivas e mal-educadas - há casos de agressão física -, passa boa parte dos cinqüenta minutos de aula pedindo para que dois ou três parem de trocar socos e pontapés, que outro vista a camiseta, que desça das carteiras, tire os pés das cadeiras, que parem de cantar, que não mexam nos pertences professorais, que não quebrem os vidros ou outros utensílios da sala, que não jogue baralho, desligue o celular, esqueça os jornais (cadernos de esporte, signos e fofocas), pare de bater palmas, de assobiar, de batucar com canetas, réguas ou outros, arremessar papel higiênico no ventilador, riscar as paredes e vidros (o que faz um som estridente), e etc e etc. Como é sintomático dos tempos atuais, a Internet tem servido para glorificar essas práticas: no Orkut, apenas uma comunidade destinada à apologia da sabotagem à educação - denominada Galera do Fundão(3) - possui mais de 830 mil membros. Há outra muito instrutiva: Adoro Escola, Odeio Estudar.
Quem ganha nesse processo todo? Os ministros e as mais baixas chefias se mantêm nos seus cargos; os professores recebem seus salários; o sindicato eleva burocratas à condição de altos gestores, mantém seus membros fora do trabalho - que eles detestam -, consegue participação em fundos públicos e capitaliza a contribuição dos docentes; os alunos são aprovados, iniciam-se nos símbolos e regras da cultura juvenil, arrumam namoros, se divertem. Mas, sobretudo, nesse processo todo, saem fortalecidos os grandes pedagogos de nosso tempo: a TV, o rádio, a Internet, que necessitam de uma massa de pessoas falidas intelectualmente para fazer de cada cabeça uma antena para suas programações. Mas como o que aí se veicula é sobremaneira um conteúdo empresarial, são as grandes corporações a colherem os louros de toda essa história. Eles têm nos estudantes a garantia de uma massa receptiva a qualquer novidade mercadológica, um aglomerado de consumidores dispostos a bater recordes de bilheterias, lotar Shopping centers, shows de rock e estádios de futebol. Pessoas bastante propensas ao consumo, submetidas de bom grado à indústria e ditadura do entretenimento e pouco propensas à indagação. O Fracasso educacional é uma das faces da vitória da cultura capitalista transnacional. Há saídas?
Algumas escolas particulares do Estado de São Paulo, cuja burocracia é mais ágil, têm diminuído o comprimento das salas e aumentado a sua largura, de forma a evitar que existam fileiras de alunos com mais de quatro cadeiras impossibilitando, assim, que venha a existir a «galera do fundão». Da mesma forma, embora não existam estatísticas sobre isso, aquelas escolas onde a arquitetura obriga um maior convívio externo às salas entre professores e alunos, tem menos casos de violência e menores animosidades entre alunos e professores. Essa menor animosidade se verifica, também, quando a maioria dos professores são provenientes do bairro onde se aloja a escola. Diminui-se, assim, a impessoalidade, sem a qual não é possível grandes estranhamentos mútuos. No mesmo sentido, seria importantíssimo que os professores se fixassem na unidade escolar, não transitando entre quatro ou cinco e não mudando de escola de um ano para o outro, como ocorre por conta da precarização e desorganização.
Algumas experiências, como é o caso do CEFAM de Franco da Rocha durante 1996 ? 2000, onde se buscou alargar o âmbito de participação estudantil, diminuindo a hierarquização e estabelecendo formas de co-gestão discente, tem conseguido melhorar o padrão educacional uma vez que, despertando a participação discente, desperta, por seu turno, uma maior responsabilidade e interesse por parte do aluno. Talvez seja o caso urgente de se eliminar de vez a obrigatoriedade de assistir às aulas, como ocorre na experiência, bem sucedida, levada a cabo pelo teórico de administração de empresas Ricardo Semler. É sabido que a abertura da escola nos finais de semana aos alunos e membros do bairro diminuiu as depredações e a violência, mas era vista como loucura essa «ousadia» do PSDB.
Atuações nesse sentido haveriam de ser reforçadas com um imenso investimento na educação fundamental e média, também com uma maciça requalificação dos professores, drástico aumento dos salários e estabelecimento de jornadas máximas de 30 horas semanais, condição primeira para a permanente autoformação do docente. Tudo isso é necessário e tudo isso demanda luta, muita luta. Mas ante toda a chefia e com o atual imobilismo, qual professor do Estado ousaria defender tais bandeiras? A questão permanece: há saídas?

1) Maurício Tragtenberg (1929-1998), autoditada, foi professor da rede fundamental e média de ensino do Estado de São Paulo e posteriormente professor universitário. Intelectual de grande notabilidade no cenário acadêmico brasileiro foi colunista, construiu uma obra e uma trajetória ligada as lutas dos trabalhadores e das minorias oprimidas.

2) Fernando Azevedo (1894 ? 1974), Pedagogo, foi uma grande ativista da educação no Brasil tendo o seu nome ligado ao desenvolvimento educacional do país.

3) O Orkut é o similar brasileiro do HI5, programa de relacionamento. Galera do fundão é um termo que designa o conjunto de alunos que sentam no fundo da sala de aula para, assim, mais tranqüilamente, sabotarem a aula fazendo o que lhes aprouver: dormir, namorar, ouvir música, cantar etc.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 168
Ano 16, Junho 2007

Autoria:

Ronan Gomes Gonçalves
Formado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista ? Marília ? Professor da Secretaria Estadual de Ensino do Estado de São Paulo - Brasil
Ronan Gomes Gonçalves
Formado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista ? Marília ? Professor da Secretaria Estadual de Ensino do Estado de São Paulo - Brasil

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