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"É preciso encontrar alegria nos combates desiguais"

Rui Assis, advogado, (citando Sophia de Mello Breyner) em entrevista à Página:

Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (1987), Rui Assis exerce advocacia desde 1989. Em 2004 torna-se Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. É Docente, conferencista e formador nas áreas de Direito dos Contratos, Direito do Trabalho e Direito dos Menores, sendo autor de diversos artigos e monografias nestas duas últimas áreas. Exerce também a actividade de formador do Centro de Estágio e do Centro de Formação do Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados na área de Direito dos Contratos e Direito do Trabalho. É advogado do Sindicato dos Professores do Norte desde 1993.
Foi precisamente nesta última qualidade que entrevistamos Rui Assis. Uma conversa que teve como objecto central a actividade do departamento jurídico do Sindicato dos Professores do Norte, através da qual procuramos saber um pouco da sua história, caracterizar a procura e a natureza dos processos, mostrar as expectativas dos professores que a ele recorrem, enfim, dar a conhecer um serviço cuja razão de ser se dilui na natureza da própria actividade sindical mas com o qual poucos estarão familiarizados.

Em que contexto surge o departamento jurídico do Sindicato dos Professores do Norte?

A criação do departamento jurídico aparece muito proximamente associado à fundação do próprio Sindicato dos Professores do Norte (SPN) e está intrinsecamente relacionado com a sua própria natureza de actuação. A razão de ser do sindicato são os seus sócios e a tutela dos seus interesses e direitos. Essa função é prosseguida pela actividade político-sindical geral, mas muitas das vezes ela tem uma expressão jurídica.

Quem pode recorrer a ele?

Apenas os sócios do SPN. Há situações em que o sindicato se disponibiliza para atender professores não-sócios ? nomeadamente ao nível de informações sobre concursos, numa tentativa de dar a conhecer e aproximar as pessoas da actividade sindical ? mas há serviços específicos, como este, a que apenas podem recorrer os sócios.

De que forma está organizada a resposta?

A base do departamento jurídico é o serviço de atendimento a sócios, que assegura uma primeira linha de resposta através da triagem das questões e das dúvidas colocadas; uma segunda linha de resposta é a que designamos por fase de pré-contencioso, assegurada pelos dirigentes do sindicato; finalmente, existe o serviço de contencioso, assegurado por advogados. Neste momento o SPN tem quatro advogados avençados e passará a ter, a partir deste mês, um advogado a tempo inteiro.

Que questões são mais colocadas por quem procura este serviço?

São questões que se prendem sobretudo com o percurso na carreira profissional, associadas, quer no ensino não superior quer no ensino superior, a situações de precariedade na carreira ou a contratos precários. Isto é particularmente visível no ensino superior, tanto no politécnico, com o caso de professores equiparados, como no universitário, com professores convidados em situações de carreira que não lhes conferem estabilidade.
Depois, há também situações com alguma expressão relacionadas com o ensino particular, questões de ordem disciplinar e do foro laboral, ligadas principalmente ao quadro contratual em que os docentes se movimentam.
Nestes diferentes tipos de procura concentra-se cerca de 90 por cento dos casos, até porque as questões da carreira envolvem muitas dinâmicas e realidades distintas.
A isto poderíamos acrescentar, eventualmente, situações mais sazonais, mas que também definem um tipo de procura, que se relacionam com os concursos. Todos os processos de concurso, quer no ensino não superior quer no ensino superior.

A procura tem aumentado nos últimos anos?

Sim, claramente. Apesar de não ter dados estatísticos que permitam quantificar ao certo essa demanda, ela aumentou de forma muito significativa, em particular ao nível do ensino superior. O ensino superior não era, tradicionalmente, um palco de turbulência laboral. Hoje é-o, e foi um dos sectores onde aumentou de forma assinalável a procura dos nossos serviços.

A nível global, que motivos encontra para esse crescimento?

Motivos de ordem diversa. Hoje em dia, do ponto de vista do quadro legal, estamos num contexto de grande transformação. Há dez anos, o quadro normativo era dotado de muito maior estabilidade do que actualmente. E isso é sempre gerador de fracturas, de incertezas e de dificuldades de adaptação a novos quadros.
Depois, o próprio contexto laboral é também ele mais instável, o que estimula significativamente - quanto mais não seja pela necessidade - a procura de pontos de apoio. Em suma, temos por um lado um quadro normativo em grande mutação e por outro um quadro de precariedade e de instabilidade.
Para além disso, há também uma maior consciencialização para a necessidade de exercício dos direitos. E, no fundo, é aí que se posiciona o papel do sindicato: não tanto numa posição de alimentar o conflito ou o litígio, mas numa lógica de criação de condições para o exercício dos direitos por parte dos profissionais. Nesse sentido, e dada a especificidade da área, tendem a procurar uma resposta especializada, que acham que pode ser especializada e eficiente, procurando-a no quadro de uma instituição que sabem ter um "know-how" especializado.

Essa procura obrigou, com certeza, a um reforço da sua capacidade de acção...

Sim, este aumento da procura torna-se exigente para o contencioso, que tem de se organizar melhor e de garantir uma maior capacidade de resposta. E a verdade é que estes dois factores são indutores de uma maior procura. É um ciclo virtuoso através do qual deixa de se conseguir determinar onde está a causa e o efeito. E isso é particularmente evidente ao nível do ensino superior. A partir do momento em que o sindicato apostou na área do contencioso para o superior verificou-se um aumento da procura.

A área da educação não é muito comum na área do direito?

Não. Existem alguns advogados que a trabalham de forma incidental e muito generalista, e outros que, tendo tido episodicamente ao longo da sua vida profissional uma ligação ao sector ? como é o caso de advogados de sindicatos, de instituições de ensino, de escolas, de direcções regionais, etc. - têm alguma facilidade em lidar com estas questões. Mas os advogados que trabalham especificamente a área da educação são, de facto poucos. Tão poucos que acabamos por nos conhecer mutuamente, sendo até procurados por colegas que não tendo qualquer vínculo à área e colocados perante um problema para o qual necessitam de aconselhamento, nos acabam por consultar.

Resposta especializada e humanizada

Referiu que tem existido uma procura mais substancial por parte dos professores do ensino superior, mas, em termos globais, quais são os sectores de ensino que mais recorrem ao serviço jurídico?

Diria que a procura mais significativa se situa ao nível do 2º e 3º ciclo do ensino básico e do ensino secundário, onde se concentra, em termos de activos, a fatia mais significativa. No entanto, tal como já referi, o ensino superior foi aquele que, na última década, ganhou maior expressão. Fruto dessa procura, aliás, o SPN tem actualmente um advogado praticamente destacado para esse subsector.

Quais são habitualmente as expectativas dos professores que recorrem a este serviço?

Essa questão está relacionada com aquilo que há pouco referi, ou seja, com a existência de uma cultura de exercício dos direitos. No fundo, as questões aqui colocadas não se limitam a problemas de ordem estritamente sindical, mas sobretudo culturais e de cidadania. Nesse sentido, existe sempre a expectativa de que o sindicato possa fazer alguma coisa em nome delas, em representação delas.
Ao mesmo tempo, e este é um aspecto que considero importante referir, penso que os professores sentem que ele possui igualmente uma função de representação socioprofissional, isto é, a questão que se colocam muitas vezes é o que pode o sindicato fazer por uma determinada questão relacionada com a classe profissional que o sindicato tutela enquanto tal e não necessariamente de que forma irá resolver o seu problema pessoal.
Depois, a expectativa de que o sindicato possa ter uma capacidade de resposta especializada, isto é, de que os interlocutores que aqui se encontram ? sejam os funcionários do atendimento, sejam os dirigentes ao nível do pré-contencioso, sejam os advogados ? têm uma sensibilidade e um conhecimento que interpreta bem a realidade social e profissional em que se inserem.
Se por um lado isto nos permite identificar as características da procura, desenvolve, por outro, a necessidade em pensar-nos enquanto serviço, procurando saber quais são os seus objectivos, o que é suposto assegurarmos às pessoas, o que é um sócio bem atendido pelo contencioso. O contencioso é um serviço que tem uma componente jurídica eminentemente técnica, onde há a obrigação de ser rigoroso e competente, mas ao qual as pessoas se dirigem com determinado tipo de expectativas e de motivações. Ou seja, há um contexto institucional que não é inócuo ao serviço que é prestado.

De que forma caracterizaria a natureza dos processos analisados pelo departamento jurídico?

Diria que estão divididos em três grandes blocos: um primeiro que se relaciona com um tratamento meramente administrativo - traduzido em requerimentos, exposições, reclamações, etc; um segundo bloco, para onde confluem cerca de metade desses casos, que já se incluem na fase do contencioso judicial e que são dirigidos para o tribunal administrativo ou do trabalho; e um terceiro, que tradicionalmente não tinha muita expressão mas que temos procurado incrementar, que passa por recorrer a instâncias alternativas e que têm de ser aferidos individualmente.
Uma delas é a Provedoria de Justiça. O sindicato tem suportado juridicamente com alguma frequência processos de queixa junto do Provedor de Justiça, para situações que ou não têm resposta legal ou em que o enquadramento jurídico é susceptível de uma leitura ambígua.

Essas situações são comuns?

Ocorrem com alguma frequência. Ou porque a lei não é suficiente, ou porque não existe, ou porque não tem provisão para aquele caso, ou porque o tratamento que é dado à lei fica aquém do objectivo. Nesses casos, incentivamos o recurso à Provedoria de Justiça, que muitas vezes, quando não estão em causa questões estritamente particulares, se podem aplicar ao grupo profissional como um todo.
Um outro exemplo de instância alternativa, que, embora ainda com uma expressão em absoluto reduzida, ganha crescente relevância, são as instâncias comunitárias, nas quais procuramos pontos de apoio jurídico. Há muitas questões que podem ser discutidas do ponto de vista das regras comunitárias. Neste sentido, cada vez mais o tratamento jurídico é, também ele, global.

Pensa que essa instância comunitária veio ajudar, de alguma forma, a reforçar a capacidade de resolução dos problemas?

Quando nos situamos num sector onde cerca de 95 por cento dos casos têm como empregador o Estado ou uma pessoa colectiva pública, como uma universidade ou um politécnico, existe uma grande adversidade que é o facto de tudo funcionar num circuito muito fechado.
O recurso a instâncias externas não judiciais, como são os dois exemplos que referi, têm a grande virtude de obrigar o sistema a comunicar com o exterior, procurando patamares de "respiração" para um circuito que, tradicionalmente, é pensado por dentro, para dentro, auto-justificado, cujo controlo social e jurídico não é fácil. E isso é sempre uma instância importante do ponto de vista crítico, porque cria interpelações que são positivas, introduzindo critérios de apreciação diferentes, criando um potencial claramente superior. Cada caso confirma ou não esta virtuosidade, mas o potencial existe.

Uma instância de "vanguarda"

Que percentagem de casos têm um desfecho favorável?

A tendência é para a esmagadora maioria dos casos ter um retorno bem sucedido para o professor. Até porque o departamento jurídico funciona também como uma instância crítica do ponto de vista das pretensões dos queixosos. A lógica que pretendemos imprimir não é no sentido de judicializar toda e qualquer pretensão, mas sim de enquadrá-la e sustentá-la quando ela tem plausibilidade do ponto de vista particular ou, noutras situações, do ponto de vista político-sindical.
Neste último caso, a viabilidade técnico-jurídica pode por vezes ser questionável, mas a sensibilidade político-sindical justifica a sua discussão. São questões que fora do contexto sindical seriam avaliadas de uma determinada forma e que aqui são avaliadas sob um prisma diferente.
Por outro lado, quem trabalha num serviço desta natureza é muitas vezes confrontado com casos em que as pessoas não têm razão mas têm razões, isto é, podem não ter razão do ponto de vista jurídico e formal, mas têm razões que as atormentam ou perturbam. A pedagogia do exercício dos direitos não é apenas uma questão ideológica, é um questão que tem também expressão na pessoa que se atende.
Nessas situações, é preciso saber enquadrar as razões das pessoas, doseá-las, configurá-las, torná-las compreensíveis. Nós deparamo-nos com questões do foro laboral e profissional, mas temos de ter a sensibilidade e a compreensão para perceber e ajudá-las a discernir. E esse é também um serviço que temos de assegurar às pessoas. Se têm razão jurídica ou não é uma questão técnica, que é fundamental que exista.

Uma das questões que se deverá colocar com cada vez maior frequência num quadro legislativo crescentemente complexo prende-se com a necessidade de obter pareceres jurídicos sobre as mais diferentes matérias. Que papel tem o departamento jurídico nesta área?

Sim, essa é outra vertente do departamento, embora os sócios, a título particular, recorram pouco a ela. Porém, a evolução organizativa aponta para que ele funcione também de forma crescente como uma instância de acessoria da direcção do SPN, onde nos enquadramos, mas igualmente numa dinâmica de articulação e de trabalho conjunto com os restantes departamentos de contencioso dos sindicatos que integram a Fenprof. Porque indiscutivelmente muitas das questões profissionais que afectam as estruturas sindicais têm cada vez mais um carácter global.

O actual quadro legislativo favorece ou não o recurso a este tipo de serviço?

Sem dúvida. Nesse sentido, penso que o nosso grande desafio hoje é termos de lidar, de alguma forma, numa espécie de dupla condição. Sermos, por um lado, uma instância de resistência ? porque há, objectivamente, na actual evolução legislativa um quadro de perda de alguns direitos e de regalias no contexto do exercício profissional ? procurando viabilizar o exercício de regalias e direitos tal como estavam configurados, e por outro assumirmo-nos como uma instância de vanguarda. Não podemos ficar a lamentar-nos quando a realidade à nossa volta mudou. Temos de ser capazes de interpretar o futuro e as mudanças que ele traz. Sob o ponto de vista deste trabalho, o momento actual é particularmente turbulento mas também fecundo. É um quadro que reforça a necessidade de haver um apoio jurídico permanente que sustente a capacidade de lidar com este contexto.

Partindo da sua experiência profissional, considera que relativamente a outras classes profissionais os professores têm uma maior tradição de luta e de salvaguarda dos seus direitos?

Os professores têm uma tradição profissional que é muito favorável a uma cultura de exercício dos direitos. Não é o único, mas é um grupo profissional que tem, desse ponto de vista, uma boa tradição. É uma classe com uma formação de base elevada, que disputou muito a sua condição profissional nos últimos anos, constituindo-se, seguramente, como um dos grupos profissionais com uma posição mais consistente, mais robusta e educada do ponto de vista cultural face a este tipo de preocupação.
Para responder concretamente à sua pergunta, não sei se será o grupo profissional que mais procura este tipo de serviço, nem sei se será possível quantificá-la, mas é seguramente um dos que terá uma maior tradição na procura na área da informação jurídica, da fundamentação e do enquadramento das suas posições de carreira.
E que tem, sobretudo, uma característica que considero interessante. Quando se tem como empregador o Estado, cria-se, ao longo dos anos, uma cultura de problematização das questões, que, no limite, acaba por ser um combate desigual. Porque do outro lado está uma entidade com uma preponderância muito significativa do ponto de vista jurídico. Essa situação tem vindo a mudar e o Estado, hoje, nem por isso tem de ser mais preservado, sendo muito colocado em causa. Mas tradicionalmente sempre foi um combate muito desigual, e como dizia a Sophia de Mello Breyner "é preciso encontrar alegria nos combates desiguais". E eu considero que os professores souberam fazê-lo.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 168
Ano 16, Junho 2007

Autoria:

Rui Assis
Jurista
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Rui Assis
Jurista
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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