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A morte súbita no desporto
Segundo me contaram (não tenho sobre o assunto informações precisas) que alguns médicos portugueses, com o Prof. Fernando Pádua à cabeça, terão adiantado que se reduzirão consideravelmente as mortes súbitas em desporto, no dia em que se aplicarem aos atletas os benefícios de rigorosos exames de aptidão que decidam da aptidão, ou não, à prática do desporto de altas performances (é caso, para perguntar, se os actuais exames de aptidão, levados a cabo por especialistas em medicina desportiva, não têm grande validade). Seria lamentável estultícia da minha parte pôr em causa a medicina preventiva e o controlo médico-desportivo, designadamente em atletas a quem se exige tudo, na prática da sua profissão. O que não deve a humanidade aos maravilhosos progressos da ciência médica? O que não deve a humanidade aos extraordinários exemplos de generosidade, de solidariedade de tantos médicos, enfermeiros e investigadores? Quase apetece acrescentar, aqui e agora: a medicina não se discute! Mas, mesmo assim, para quem pretende não perder, em quaisquer circunstâncias, o espírito crítico, há questões a levantar: o princípio da incerteza não se aplica, em tudo o que é humano? Na ânsia irreprimível da vitória, não se criaram substâncias e técnicas de dopagem mais sofisticadas do que as habituais grelhas de análise desta problemática? A morte súbita, no desporto, não pode decorrer, por exemplo, de um determinismo causal genético? Não é possível encontrar, na medicina, uma causalidade que provoca um efeito contrário àquele que deveria ter provocado, como Edgar Morin nos aponta, em todo o conhecimento científico? E não é verdade que um atleta é obviamente influenciado pela variedade dos eventos sociais e políticos, que condicionam a própria bioquímica do corpo? E que, se os genes têm uma importância indiscutível, no surgimento de atletas superdotados, é possível descrever correctamente uma etiologia, desconhecendo o código genético? O paradigma biológico, a que o saber médico muitas vezes se reduz, não deverá interagir com os paradigmas biológico e social, para que o cartesianismo não se perpetue, indefinidamente?
Como Zarifian nos diz, no livro «Les jardiniers de la folie» (Editions Odile Jacob, Paris): "todos os comportamentos são regidos pelo cérebro; o conhecimento cerebral deverá permitir compreender os comportamentos" (p. 108). A morte súbita no desporto tem sido estudada, dentro de uma causalidade linear, levando assim alguns especialistas a pensarem que a sua especialidade resolve cabalmente os problemas da complexidade humana. A importância dos agentes de stress, na morte súbita no desporto, é devidamente salientada? As multidões apaixonadas e alienadas; alguns dirigentes e jornalistas, especialistas em coisa nenhuma, e que não excrescem o senso comum; treinadores e técnicos de saúde, inconscientes e ao serviço do economicismo que invadiu e manipula a sociedade actual ? são, ou não factores de stress? Diante de sujeitos humanos, toda a objectualização é ilegítima. De facto, os problemas que afectam os atletas não são unicamente de raiz biológica. Qualquer monismo epistemológico é impensável, no domínio da complexidade. Por isso, na minha ignorância, no que à medicina diz respeito, e com a minha reduzidíssima sabedoria de filósofo, pergunto se não há pessoas que morrem, depois de o médico lhes garantir que se encontram de boa saúde. O que me leva a dizer que devem ser múltiplas as causas da morte súbita em desporto. O «mesmo» e o «uniforme» não compõem o inteiramente humano. Percebe-se, assim, o que dizia o Prof. Abel Salazar: "O médico que só sabe medicina nem medicina sabe". Na mudança epistemológica que atravessamos, a crítica ao reducionismo de certos especialistas é indispensável, se bem que os devamos respeitar, porque o seu saber é necessário (mas não suficiente) ao conhecimento da complexidade humana.

  
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Edição:

N.º 168
Ano 16, Junho 2007

Autoria:

Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa
Manuel Sérgio
Universidade Técnica de Lisboa

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