Página  >  Edições  >  N.º 167  >  Dois pecados históricos da civilização cristã

Dois pecados históricos da civilização cristã
Há pecados históricos da civilização ocidental, genericamente de matriz cristã, que são particularmente graves porque, silenciados na profundeza da má-consciência, raramente ou nunca se assumem, "urbi et orbi", pelos efeitos provocados. Sobretudo e mais grave ainda, porque esses efeitos atravessaram séculos e repercutem na actualidade.
Perante as práticas antinómicas duma doutrina firmada numa pedagogia de fraternidade, tolerância e perdão, vemos dois "pecados mortais" contra o próximo que foram particularmente devastadores: as discriminações dos judeus e dos negros. Os primeiros, discriminados por não acreditarem que Jesus era uma representação ou um enviado do Senhor Deus, o Messias anunciado pelos profetas; os segundos, porque, alegadamente nascidos sem alma, só a adquiriam depois de baptizados, mas continuando a ser considerados intelectualmente inferiores ao homem branco. E em ambos os casos, a discriminação fixou-lhes, como condição extrema de sobrevivência, as margens do rio da história dos brancos cristãos, - por estes tomada como normativa da Verdade e do Bem ? resistindo, em guetos e quilombos, à perseguição, ao extermínio e à escravidão.
A necessidade continuada do trabalho escravo propiciou a indispensabilidade do negro e, por arrastamento, a sua paulatina e relativa ascensão na sociedade do branco, uma vez reconhecido que ele afinal possuía alma, capacidade intelectual igual à do branco e, quando "educado", podia compartilhar dos seus valores sociais, morais e religiosos. E, sobretudo, não tinha a "culpa" de ser negro. Por isso, ele nunca foi expulso dos lugares para onde a escravatura o afastou da sua pátria original e pôde fazer seu o país do desterro, por fim sem o sentimento doloroso da diáspora e o apelo lancinante do retorno à Mãe-África, cuja memória histórica, transmitida oralmente, começava e acabava na sua própria memória.
Diferentemente, o judeu tinha a memória escrita de um longo passado e o estigma da "culpa" que lhe foi assacada quando os cristãos privilegiaram a leitura da segunda parte (o Novo Testamento) da Bíblia, o Livro Histórico, em detrimento da primeira parte (o Velho Testamento), que contemplava, desde o Génesis, os tempos anteriores ao surgimento de Jesus.
Aqui começa a separação do mesmo povo que se dividiu entre a Palavra dos antigos e respeitados profetas, como Abrarão e Moisés, e a Palavra de um novo profeta chamado Jesus. No contexto de um pequeno mundo da Ásia Menor de povos politeístas, confinando com civilizações poderosas, e igualmente politeístas, acreditar num Deus único, criador de todas as coisas, que já andara na Terra e a ela voltaria , segundo os profetas, não bastara, porém, para unificar os habitantes monoteístas do mesmo território. Uns, que seguiram a Palavra de Jesus, reconheceram-no como sendo, mais do que o Messias prometido, a própria incarnação do Senhor Deus; outros, entenderam que Jesus era simplesmente um profeta novo e não o Messias que ainda haveria de chegar, em nome de Jeová; e outros ainda, quinhentos anos após a morte de Jesus, entronizando no meio de cristãos e judeus um novo profeta, Maomé, em nome de Alá, também senhor do Céu e da Terra. E, por incrível que pareça hoje, pois partiram da mesma revelação moisaica de um Deus único, cada um dos três grupos de crentes seguindo códigos distintos: a Bíblia, a Tora e o Corão.
Chamou-se Palestina ao país de Canaã consignado pelo Senhor Deus, em várias épocas, - designadamente as de Jacob (a quem foi dado o nome de Israel), de Abraão e de Moisés - aos "filhos de Israel", compreendendo o espaço entre o deserto do Sinai e o Líbano, o Mar Salgado e o rio Eufrates. Segundo aqueles que foram chamados entre o povo escolhido para passarem às gerações vindouras a Palavra do Senhor Deus, este mandou que tal território fosse dividido à sorte pelas tribos israelitas, dispersas ou expulsas da terra original em consequência de grandes fomes, rixas intestinas e guerras de conquista movidas pelos vários impérios emergentes que dominaram na região ao longo de séculos, tais como o Selêucida, o Romano, o Bizantino, o Árabe ou o Turco (este até ao fim da Primeira Guerra Mundial). E, por último, vencido pelos Aliados o Império Otomano, foi como protectorado do Reino Unido, por mandato da Sociedade das Nações, desde 1918 a 1948, que as Nações Unidas promulgaram o Estado de Israel.
São sobejamente conhecidas as reacções dos palestinos, logo em 1948, apoiados pelos vizinhos árabes, ao retorno dos judeus da Diáspora à Terra Prometida e à sua determinação de voltarem a orar ao Senhor Deus no templo de Jerusalém, como os muçulmanos oravam na mesquita de Al-Haram, em Meca. Um estudioso do hebraico da Bíblia e do Talmude dirá, como George Steiner, no seu ensaio "Paixão Intacta", que " a 'textualidade' da condição judaica, desde a destruição do Templo até à fundação do moderno Estado de Israel foi o instrumento da sobrevivência no exílio; essa sobrevivência esteve à beira da aniquilação. Para continuar a existir, 'o povo do Livro' tinha de voltar a ser uma nação."
Mas pondera ainda Steiner que, "materialmente encerrado numa pátria material, o texto pode vir a perder a sua força, os seus valores de verdade podem vir a ser traídos"- o que significaria um "regresso" de recurso à pátria mítica que sobreviveu até hoje, independentemente do tempo e do espaço onde quer que o Livro esteja presente.
Talvez os palestinos e os árabes contem com este raciocínio para continuarem a sua pressão ... Mas a interrogação que um observador "desinteressado" fará, hoje, face à luta que as duas partes travam renhidamente pela conquista de uma pátria "material", é se os judeus, confiando finalmente que a má-consciência dos cristãos não permitirá outras Diásporas e Holocaustos, poderão desistir de disputar até ao final dos tempos a "herança" da terra de Israel, considerando as muralhas sagradas de Sião como selo do testamento do Senhor Deus.

  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 167
Ano 16, Maio 2007

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo