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Línguas e cifrões

1.? O ministro da economia do actual governo decidiu que "Algarve" passaria a escrever-se ALLGARVE (e, assim, a pronunciar-se como se fosse uma palavra inglesa). A decisão desencadeou, segundo o relato da imprensa diária, reacções de desagrado e até de indignação e protesto nalguns deputados, que o senhor ministro classificou como um «disparate» (sic). Tratar-se-ia, segundo declarou na Assembleia da República, apenas de uma estratégia de promoção turística ? só para inglês ver, presume-se. E assim ficámos, porque, que eu saiba (mas corrijam-me se estiver errado), nenhum partido parlamentar o acusou de violar a Constituição da República Portuguesa, artigo 9º (tarefas fundamentais do Estado), nomeadamente na sua alínea f: "assegurar o ensino e a valorização permanente, defender o uso e promover a difusão internacional da língua portuguesa".

2.? Como se trata do mesmo ministro que, recentemente, na China, gabou os baixos salários praticados em Portugal como um factor de atracção dos investimentos em proveniência desse país, este episódio talvez pareça a algumas pessoas a prova provada das idiossincrasias deste governante. Mas seria uma conclusão no mínimo precipitada. Num interessante naco de prosa intitulado «Portugal é um país?» (Público, 13 de Abril 2007), o professor Luís Campos e Cunha (C&C, para abreviar), catedrático de economia da Universidade Nova de Lisboa e durante alguns meses ministro das Finanças do actual governo, lança nova luz sobre o assunto.

3.? Começa por responder à pergunta que faz com invulgar franqueza em economistas com passadiço governamental. Do ponto de vista económico, diz-nos, a resposta só pode ser um rotundo não. Portugal já não tem moeda nem política económica externa (comercial, aduaneira, bancária) próprias, pelo que, «Portugal como economia, sorry, já não é um país», mas uma região da União Europeia (UE), «ou pelo menos da área euro». Quem governa economicamente Portugal (e as outras regiões do euro) são o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia, o Conselho da UE e outras instituições supranacionais. Tudo o que resta como instrumentos de macropolítica económica no âmbito nacional é o Orçamento de Estado (OE) ? isto é, o modo de gastar o dinheiro dos impostos que pagamos. Para o professor C&C é «irrelevante saber se valeu a pena», visto que «era basicamente inevitável».

4.?Mas então, perguntarão os leitores para quem a questão é relevante, se Portugal não existe do ponto de vista económico, podemos continuar a dizer que é um país? Sim, prossegue, tranquilizador, este ex-governante, porque ainda tem uma língua, uma cultura e um património próprios. Razão pela qual, em sua opinião, o OE deveria servir fundamentalmente para promover essa diferença linguística e cultural.

5.? Consideremos então um exemplo prático. O governo actual decidiu gastar uma parte substancial do OE no ensino precoce da língua inglesa. À Câmara Municipal de Lisboa (CML), por exemplo, coube uma fatia de 33 milhões de euros, que serão pagos à "Know-How", a empresa que a CML contratou para ministrar aulas de inglês a 4000 alunos do 1ºciclo das escolas da capital. A premissa destas operações financeiras parece ser a mesma do professor C&C, mas extraindo dela a conclusão oposta à sua: se Portugal não existe economicamente como país, porque haveria de continuar a ter língua(s) e cultura próprias?

6.? Haverá outra explicação ? Se acreditarmos no que vemos, ouvimos e lemos a toda a hora, sim: "temos que ser competitivos, qualificarmo-nos, modernizarmo-nos". Mas cabe perguntar: se as crianças portuguesas aprenderem outras línguas estrangeiras (castelhano, francês, alemão, italiano, russo, hindi, chinês, etc.), já não conseguirão ser adultos competitivos, qualificados e modernos? Uma coisa é certa: o inglês em regime de quasi-monopólio escolar é um negócio de milhões ? para quem "know-how".

7.?Que pensará o professor C&C desta política dos seus ex-colegas de governo? Não sabemos. Não toca neste assunto no referido artigo. Mas sobre a política ALLGARVE tem uma opinião firme: é boa, «com um óptimo nome de que é prova a celeuma que deu». Esse juízo contradiz, obviamente, a sua ideia de que o OE deveria servir para compensar linguística e culturalmente a perda de soberania económica. Mas a contradição não parece incomodá-lo.

8.? Regressemos à língua inglesa. O professor C&C declara noutro passo do seu artigo ser adepto do seu ensino desde a infância. Não nos explica a razão dessa escolha tão selectiva. Não é concerteza para nos diferenciar linguística e culturalmente do Reino Unido. Mas adiante: é irrelevante indagar quais são as fantasias deste ou daquele indivíduo sobre as excelências do inglês, um idioma tão estimável como qualquer outro. A pergunta verdadeiramente interessante é outra: que tem o Reino Unido (para não falar nos EUA) de especial para conseguir ter tantos agentes de propaganda da sua língua oficial, muitos dos quais o fazem em regime de voluntariado? Creio que é neste particular que podemos aprender alguma coisa com o artigo do professor C&C, muito embora para isso precisemos de separar o trigo do joio.

9.? Muito resumidamente, porque não há espaço para mais: o Reino Unido é o único dos grandes países da UE que continua a ser um país sob todos os pontos de vista. Tem moeda própria (a libra esterlina), política externa económica própria (em particular com uma comunidade de 15 países ? incluindo o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia ? de que o seu monarca é o chefe de Estado), língua dominante própria (a inglesa), além de cultura e património próprios. É ademais a 5ª maior economia e a 2ª maior potência militar do mundo, membro do conselho permanente das Nações Unidas e do G8. Tudo argumentos poderosos e suficientemente convincentes para levar muitos dos governos dos países economicamente inexistentes da UE e aqueles indivíduos que acreditam terem sido escolhidos para comandarem as nossas vidas (o termo que utilizam para se autodesignarem colectivamente é "elites") a sonharem com o dia em que, pela sua mão, a língua onde os cifrões falam (hoje) mais alto do que em qualquer outra seja também a dominante na sua terra natal.


  
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Edição:

N.º 167
Ano 16, Maio 2007

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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