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O Gaiato que amava a escola e o sentido de justiça
O gaiato que foi para a escola e já sabia ler e escrever chegou ao quarto ano. Tem agora 9 anos. A ansiedade desse primeiro dia em que queria levar a mochila carregada com todos os livros e todos os cadernos foi controlada e a escola tornou-se um ponto de encontro fantástico para interagir com os outros, para aprender a "regra escolar" e o saber da cultura legítima do Estado mas, também, o jogo do berlinde, as técnicas de fintar o adversário com a bola nos pés, de marcar golos ao primeiro toque, a troca de cromos de jogadores de futebol e de tazos para completar as suas colecções.
Ultrapassou o ritmo de comando por parte da professora e, em consequência, passou a ler dois livros da Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, por semana, na sala de aula, pois os restantes colegas demoravam mais algum tempo a completar os afazeres e ele tinha que estar ocupado.
Ama de tal forma a escola que em dias desta passou a levantar-se sozinho, toma banho e espera que um dos pais o leve com uma antecedência de 15 minutitos para agora "pôr em dia" as montagens que com os colegas faz de automóveis-miniatura eléctricos.
Mas a professora mudou e o Pedro logo percebeu que a diferença de pessoas existe e que tal se pode reflectir na relação e interacção pedagógica. Ao princípio tudo bem. Um castigo ou outro, um provável punho mais forte até o levou a ser mais atento e menos falador na aula. Mas, depois, a coisa complicou-se. Ficou algumas vezes de castigo nos intervalos porque se tinha esquecido de colocar o nome na ficha de trabalho. Nunca disse isso em casa. Disse apenas que às vezes queria fazer "chichi" e que tinha de aguentar porque a professora só deixava fazer no intervalo. Espera-se que esse barulho de alguém que não conseguiu aguentar mais e que o José Pacheco da escola da Ponte tão bem descreve na última crónica que escreveu para a Página da Educação não venha a acontecer. É que o miúdo percebeu que a regra da professora é intocável. Por isso nunca falou em casa desses castigos de ter de escrever no caderno uma folha completa com a frase "devo escrever sempre o nome nas fichas".
Contudo, há uma semana atrás, o Pedro sentiu-se injustiçado. A professora distribuiu as fichas corrigidas em casa e deu-lhe uma sem nome (havia várias) e disse que aquela era dele. Ele disse que não. Ela disse que sim. O gaiato, produto da nossa sociedade machista, lá controlou a lágrima do canto do olho mas não aguentou a injustiça de que estava a ser alvo e disse à mãe que logo disse ao Pai.
Ambos, conhecedores da letra do rapaz e da estrutura que usa utilizar nos cálculos, logo verificaram que, efectivamente, havia engano. Mas verificaram, também, que a ficha era fotocopiada dum manual qualquer, sem fonte expressa e, pior, sem espaço para os petizes colocarem as suas identificações.
Todos, pais e filho, concordaram que deveria haver uma conversa com a professora e que o garoto não deveria fazer uma página inteira com essa sapiente frase apelativa da inscrição do nome na obra de cada um. Trinta e oito linhas tem essa página, trinta e oito vezes seria expressa, injustamente, essa frase por ausência dessa marca da identidade objectiva que todos nós nos habituámos a usar na escola: Nome, ano, número e turma.
O Pai falou na manhã seguinte com a professora. O puto ia nervoso e pedia para ser uma conversa calma. Assim foi. Aparentemente a professora compreendeu que não poderia haver injustiças e que os alunos conhecem a sua própria letra e ficou de esclarecer o assunto. Até convidou o pai a entra na turma ao que este se escusou argumentando não ser preciso nem ser ético.
Apurados os factos, o teste do Pedro apareceu e estava identificado. A coisa tinha nome. Afinal aquela ficha sempre era doutro. Mas, a manhã foi de gritaria naquela sala de aula. O miúdo não tinha nada que ser "queixinhas" e a professora não aguentou ter-se enganado. Por isso, gritou, gritou de pulmões abertos. Desde aí passou a chamar-lhe todos os dias de desarrumado e desorganizado. O rapaz lá está a conter as lágrimas e o olhar de todos num tribunal que injustamente se está a tornar público. Recentemente até se voluntariou para escrever um artigo para o jornal da escola, coisa que os colegas não fizeram, para ver se conquista a professora e acaba com aqueles gritos. "É para ver se ela se esquece e gosta de mim outra vez".
É mesmo caso para perguntar: e agora pais? São ou não parte do processo educativo mesmo escolar? E agora professor do séc. XXI? E agora inspector?

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 167
Ano 16, Maio 2007

Autoria:

Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades
Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades

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