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De manhãs de nevoeiro só poderá vir um resfriado
Dois antropólogos, um português e outro espanhol, manifestaram o desejo de abrir o túmulo de D. Sebastião e mostrar, através de provas cientificamente validadas, que o rei está morto, devidamente enterrado e que, por isso, não vale a pena arriscarmo-nos a apanhar um resfriado numa qualquer manhã de nevoeiro à espera daquele que não vem.
Se o fim do sebastianismo acontecesse de forma tão simples não necessitaríamos, certamente, de ter que incomodar o sono dos mortos. O problema é que o sebastianismo é algo de muito mais sólido e fundo na sociedade portuguesa, algo que julgávamos poder ser erradicado através do poder que os cravos de Abril libertaram mas que, afinal, continua a permanecer quando acreditamos, por exemplo, que são os homens providenciais que vão fazer por nós o que só a nós compete fazer. Homens que pensam por nós, decidem por nós e esperam que não só saibamos obedecer-lhes, como, sobretudo, sejamos capazes de reconhecer o que custa mandar. Homens que, por isso, não toleram a nossa "ingratidão" e, muito menos, a nossa dissidência.
Neste sentido o sebastianismo é como que um vírus, um vírus anti-democrático. Um vírus que nos impede de acreditar na nossa capacidade de criar e pensar, de outro modo, o mundo e sobre o mundo. Um vírus que nos debilita e nos deprime. Um vírus que nos acobarda quando deixamos de ser gente para acreditar que são outros que nos dirão o que é ser gente e como é que poderemos ser gente.
Um vírus que tanto se recusa, quando nos situamos no plano dos princípios, como se aceita, quando nos situamos no plano da vida que se vive. Trata-se de uma contradição que só o é se nos esquecermos que a visão sebastianista do mundo nos exime do exercício de uma cidadania activa que dá trabalho, nem sempre compensa tanto quanto desejaríamos, e, sobretudo, exige coragem cívica e perseverança.
Não é fácil assumir uma visão diferente, por isso é que interessa fazer crer que o bom funcionamento de uma escola e a qualidade do desempenho dos seus professores é algo que depende mais de um Presidente de um Conselho Executivo eficaz do que da consciência profissional e da sabedoria desses professores. De facto não é fácil recusar o sebastianismo, por isso é que há professores que acusam os sindicatos de serem responsáveis, também, pelo actual momento de depreciação profissional de que são vítimas, sem se questionarem como é que ao longo destes anos foram igualmente, contribuindo, por actos e omissões, para que isso pudesse acontecer. Não é fácil aceitar que o sebastianismo nos conduz a becos sem saída por isso é que há docentes que entendem o insucesso escolar dos seus alunos como uma problemática que, de algum modo, é estranha às suas concepções pedagógicas e às suas práticas educativas, sem discutirem o sentido e a natureza de tais concepções e práticas, de forma a poderem valorizar, antes, as condições de vida desses alunos e as carências humanas e materiais das nossas escolas.
Não é fácil romper com a perspectiva sebastianista da sociedade mesmo no seio do movimento sindical por isso é que alguns defenderam, nas eleições para Secretário-Geral da FENPROF, a existência de um candidato natural, como se no seio de uma organização tão prestigiada só houvesse uma única opção possível e desejável. Trata-se de uma posição que, no âmbito do próprio espaço daquela organização, menoriza os professores, quer como seres pensantes, quer como activistas, parecendo que a intervenção dos sindicalistas da FENPROF, para acontecer, teria que depender da figura providencial daquela ou daquele que a lidera.
Em conclusão, o sebastianismo na sociedade portuguesa tem raízes e faz-nos mal, daí que, hoje, e neste artigo tenhamos de homenagear publicamente alguém, a nossa camarada Manuela Mendonça, que nos permitiu que acreditássemos que é possível estar na vida e na acção sindical de forma diferente, sem que os jogos obscuros de bastidores prevaleçam nas decisões colegialmente assumidas ou sequer que se pense ocultar os interesses e as benesses pessoais usando "a virtude para comprar o que não tem perdão".

No dia em que escrevemos este texto ainda não sabemos se foste eleita para Secretária-Geral da Federação Nacional de Professores, o que para o caso pouco importa, apenas sabemos que te mantiveste serena quando a calúnia foi usada contra ti, por companheiros teus, como arma de arremesso. Sorriste, mesmo quando por dentro sofrias, para nos dares alento e nos apaziguares. "Não ficaste em casa a cozinhar intrigas", mesmo que isso te tenha custado dissabores vários e o desencanto amargo de sentir na pele e na alma as atitudes daqueles que te queriam negar o direito de participares na vida de uma organização que também é tua e à qual já deste tanto.
Obrigado por isso Manuela, porque nos ajudaste a não esquecer que, apesar dos momentos de desencanto e de raiva, continuaremos, depois do Congresso, a ter responsabilidades sindicais. Responsabilidades que assumiremos sabendo que teremos que continuar a gerar acções de denúncia na rua, nas escolas e nos órgãos de comunicação social em prol da dignificação da profissão docente; sabendo, igualmente, que essa mesma actividade nos obriga a que continuemos a prestar apoio directo aos professores e a assumir o imenso conjunto de tarefas que contribuem para que, diariamente, os nossos sindicatos possam continuar a existir de forma activa e interveniente. Responsabilidades essas que, contudo, deverão obrigar-nos a reflectir se a actividade sindical se esgota nestas acções ou se as amplia. Uma perspectiva que nos obriga a criar as condições para o desenvolvimento de um trabalho de reflexão crítica, estratégica e sustentada que permita não só às organizações sindicais de professores tomar a iniciativa de uma agenda cujo controlo, hoje, nos escapa, como também o desenvolvimento de acções mais sustentadas e definidas com um outro tipo de precisão e de rigor estratégicos. Trata-se de um trabalho em função do qual a actividade sindical adquire novo alento, se diversifica, e, sobretudo, conduz à mobilização da enorme rede de recursos humanos de que dispomos, a qual teremos que estimular, quer para demonstrar o impacto catastrófico da política que o Ministério da Educação, liderado por Maria de Lurdes Rodrigues, tem vindo a implementar, quer para potenciar a emergência de uma acção sindical adequada ao tempo em que vivemos. Um tempo em que a profissão docente terá que ser concebida em função de outros parâmetros, de forma a acentuar-se a dimensão intelectual desta profissão e o novo tipo de compromissos éticos e deontológicos em função dos quais se possa romper com o corporativismo que tanto a insulariza, como a debilita do ponto de vista da sua credibilidade pública.
Obrigado Manuela porque, sejas hoje ou não a nossa Secretária-Geral, contribuíste para que pudéssemos pensar e reflectir sobre o que queremos ser enquanto sindicatos, oferecendo-nos assim um momento de esperança, de que necessitávamos como do pão para a boca. Um momento em que nos reencontrámos através de uma plataforma de princípios e de finalidades comuns e que nos fez sentir que era um privilégio ter-te como companheira no SPN e na FENPROF.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 167
Ano 16, Maio 2007

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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