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A formação de professores e o novo quadro legal
A formação de professores deveria constituir a pedra de toque de qualquer política educativa. Em Portugal, porém, e no que toca ao Básico e Secundário, não tem sido assim. Nas medidas avulsas que têm vindo a ser implementadas ao longo dos últimos anos, não é possível entrever uma estratégia coerente para este sector. Como se o sucesso dos alunos não dependesse essencialmente da formação dos professores, no sentido mais amplo que a palavra possa comportar. E quando alguma coisa começa a desenhar-se nesse sentido, logo as reacções corporativas determinam a suspensão e o recuo. Foi o que aconteceu há meia dúzia de anos com o lançamento de uma instituição acreditadora de cursos de formação inicial (INAFOP) a quem competiria definir e fazer observar regras de funcionamento na área: julgada como essencial aquando do seu anúncio, logo viria a ser abandonada perante as reacções de incomodidade manifestadas por algumas unidades formadoras, que viviam então ainda a doce ilusão da autonomia absoluta .
Parece que o actual governo decidiu enfrentar a questão com mais coragem. Um sinal disso mesmo é a publicação, quase ao mesmo tempo, de um novo estatuto da carreira e de um novo regime das habilitações para a docência. Sobre o primeiro documento e apesar de alguns aspectos equívocos ou mal conseguidos, há que reconhecer que ele constitui um importante avanço no caminho da exigência e do reforço do papel do professor no contexto social. No que toca ao segundo a apreciação não pode ser tão positiva. De facto, se nos ativermos ao preâmbulo, verificamos que a tónica da qualidade funciona louvavelmente como grande princípio subordinante. Não pode suscitar dúvidas a ninguém, por exemplo, que a formação de todos os agentes de ensino passe a fazer-se a nível do Mestrado, integrando componentes doseadas de formação científica e pedagógica distribuídas pelo primeiro e pelo segundo ciclos (agora correspondendo a um tempo de formação de três e dois anos, respectivamente).
Menos consensual pode ser já o facto de os docentes do segundo ciclo do Básico (equivalendo aos 5º e 6º anos de escolaridade) passarem a ter a seu cargo 4 áreas mais alargadas de saber, em vez das nove actualmente existentes. Resta saber, nomeadamente, se os ganhos psicopedagógicos que podem advir de um menor número de professores para cada turma compensam a inevitável perda de qualificação de conhecimentos implicada no novo modelo. Tanto mais que se pode entender que, em termos de ensino, a capacitação científica é, ela própria, um dos maiores geradores de motivação e eficácia .
Em meu entendimento, porém, onde o documento enferma de mais incoerências é no que respeita ao ordenamento das componentes de formação. Se não, vejamos. Podem estas configurar-se em regime monopolar (caso da Filosofia e do Português) ou, na maior parte dos casos, em regime bipolar, prevendo-se então apenas um caso de incompatibilidade: podendo combinar com outras Línguas, o Português e o Inglês s nunca poderão associar-se entre si, o que, na prática, consagra a paridade das duas Línguas no sistema educativo nacional. Por outro lado, o número de créditos a obter no primeiro ciclo para ter acesso a um mestrado profissionalizante cifra-se em 160 (30 cadeiras semestrais, em média) distribuindo-se pelas diferentes componentes em presença. E é aqui que as contradições se acentuam. Assim, para se ser professor de Português exige-se um mínimo de 100 créditos (exactamente o mesmo tempo de formação que é exigido para se ser professor de Inglês); em contrapartida, exige-se uma qualificação bem menor para se ter acesso a um Mestrado de ensino de qualquer outra língua: bastam 60 créditos para Espanhol ou Francês, por exemplo e apenas 40 (o equivalente a oito cadeiras) para ensinar Línguas Clássicas.
Também se entende mal que no decreto agora promulgado se preveja o agrupamento de áreas do saber que há muito funcionam em separado, em termos de especialização universitária. Refiro-me a História e a Geografia, que passam a constituir uma só área de formação. A combinação é de tal forma lassa que se permite que numa delas o professor possa vir a obter escassos 50 créditos (10 cadeiras semestrais). Por muitos esforços que possam fazer-se, não se percebe o alcance destas opções que, afinal, acabam por subverter o tal princípio estruturante relevado no preâmbulo do documento. Como clamar por qualidade e permitir, ao mesmo tempo, que se possa ensinar uma língua viva com 60 créditos de formação ou Latim e Grego com 40 créditos (oito cadeiras semestrais)? E como consentir que 50 créditos em História ou Geografia possam ser considerados suficientes para ensinar tais matérias até ao 12º ano?
Tão pouco se afigura aceitável que se tenha retirado às Universidades a possibilidade, até aqui consagrada e exercida, de ministrar formação para o segundo ciclo do ensino Básico (a não ser nas áreas onde não existam Escolas Superiores de Educação). Por fim, não se entende, de todo, que um decreto desta natureza tenha sido aprovado em Conselho de Ministros nesta altura, para entrar em vigor já no ano de 2007/2008. De facto, as Universidades acabam de reformular a sua oferta de cursos de acordo com os padrões ditos "de Bolonha". Pedir-lhes agora mais um ajustamento "ad hoc", é ignorar que o processo carece de tempo de maturação e de debate nos órgãos de decisão universitários .
É certo que neste domínio muitas coisas estão ainda por decidir e regulamentar (penso na formação contínua, na definição dos grupos de docência, na criação da entidade que há-de acreditar os cursos de formação inicial). Mas não pode deixar de registar-se, para já, que os sinais que nos chegam do Ministério da Educação (e, neste caso, também do Ministério da Ciência e do Ensino Superior) são, no mínimo, contraditórios.
Em face do que teoricamente se defende e do que na prática se consagra apetece pensar, com mágoa, que, em termos de política de educação, a princípios indiscutíveis podem, afinal, corresponder medidas inaceitáveis.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 166
Ano 16, Abril 2007

Autoria:

José Augusto Cardoso Bernardes
Presidente do Conselho Científico da Universidade de Coimbra
José Augusto Cardoso Bernardes
Presidente do Conselho Científico da Universidade de Coimbra

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