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Ensino secundário: uma visita guiada à escola
Do lado de fora da porta de vidro da sala de professores, o aluno esbracejava impacientemente na direcção da professora num apelo instante a que acudisse à sua presença. Pelo desenho do gesto, percebia a professora que o aluno se estava referindo ao teste que, momentos antes, ela quase lhe tinha arrancado das mãos no momento em que, de pé e aplicadamente, espreitando por cima do ombro do colega, ele emendava passagens do seu próprio texto, sem se importar com a chamada de atenção da professora que, ao mesmo tempo, exigia a entrega imediata do trabalho.
- Que não copiara, nem pense, "pfessora"; foi, apenas, acrescentar uma coisa de última hora que lhe ocorrera de repente ? protestava, quando se apercebeu de que a professora tomara nota do incidente no próprio papel do teste.
Chegada a professora, agora, à sua presença, o aluno, quase em surdina, por meias palavras entrecruzadas de gestos e sons imperceptíveis, vai avançando que, afinal, aquilo que ele tinha riscado é que estava certo, porque, entretanto, pensando melhor, tinha confirmado que era assim; e, então, era isso que valia e não o que estava escrito por cima; e «isso só provava que... então, se não se importasse...ele podia ali mesmo pôr tudo como tinha feito inicialmente...
Este episódio real, de que deve haver reproduções em série por esse mundo do ensino secundário ? trata-se na verdade dum aluno do ensino secundário ? comporta um conjunto de significados que traduz bem as transformações por que está passando a cultura escolar, enquanto sistema de valores específicos que rege o comportamento dos alunos, as práticas estudantis e as relações educativas inerentes ao desenvolvimento institucional do sistema educativo. Vale a pena sujeitá-lo a um esforço de reflexão no sentido de identificar que lógicas de acção se desenvolvem no interior desse processo de transformação e que fenómenos sociais se perfilam como condição da sua emergência.
O primeiro registo que importa relevar neste episódio é o da naturalização do "copianço", patente tanto no acto da sua concretização quanto nas diligências de reparação dos seus malefícios junto da professora. Para este processo de naturalização - que consiste em achar legítimo o procedimento que se adopta ? basta que o aluno reconheça que usar o trabalho do outro como seu não é um mal a evitar, o que é relativamente fácil de acontecer desde que se considere que o importante no trabalho escolar é o resultado e não o processo. Ora, se a obtenção de um bom resultado sempre foi mais determinante na escola que o processo que a isso conduz, nos dias de hoje essa orientação é, "subjectivamente" quase obrigatória. Para isso concorrem, não apenas as condições do funcionamento institucional da escola ? agravamento dramático das condições de aprendizagem em que o conflito adolescente-jovem/aluno desempenha um papel central face às novas condições de avaliação ? como a representação cada vez mais imperativa da indispensabilidade do diploma para "garantir o futuro", lugar comum hoje inevitável de todos os discursos que os jovens alunos também fazem seu. Nestas condições de "compressão escolar", o "bom" resultado sobreleva facilmente as considerações de natureza ética.
Daqui resulta um segundo registo que é o da afirmação do direito à reivindicação da cumplicidade dos professores por parte dos alunos, processo que radica numa interpretação do papel dos professores como se se tratasse do exercício dum tipo de funções apenas dependente da sua vontade e da sua disposição. Como facilmente se depreende, a dimensão institucional da escola como um sistema portador de valores socio-morais, políticos e jurídicos transcendendo os interesses e objectivos individuais dos que nela vivem não faz parte da experiência do quotidiano dos alunos, mormente quando essa experiência é parasitada pela omnipresença dos resultados escolares. Neste contexto, o exercício da autoridade dos professores corre o risco de ser interpretado como a expressão dum poder pessoal, sujeito às contingências e às circunstâncias. Torna-se então muito difícil evitar que os alunos não usem essa representação de poder para seu benefício pessoal, como está patente no episódio acima. A partir daí, o "métier" do aluno incorporará cada vez mais competências estratégicas e os saberes profissionais dos professores correrão novos riscos e novos desafios.

  
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Edição:

N.º 166
Ano 16, Abril 2007

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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