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As tragédias ocultas

A Morte de (José) Craveirinha

Morreu Craveirinha. A maioria dos que com ele dividiram o sentimento dos ideais irrealizáveis, que chamam a terra de ingrata pelo pão que não dá e se sustentam da beleza dos grandes espaços, talvez tenha sabido que um conterrâneo, o José, enfrentou o caminho temido que conduz à presença dos deuses. Parece que o José se antecipou ao destino da sua aldeia africana, tendo depositado as letras que esculpiu na berma da história, ignoradas, desmembradas, para dela conservar a réstia de esperança que em vida lhe manteve o sorriso. O sorriso que se abria com a arca oculta na imaginação para dela retirar a herança magra do pai, esse labirinto de palavras de entre as quais surgiu o seu próprio nome sonhado há muito. Conforme se alimentou dessas mesmas palavras também soube reparti-las em segredo pelos povos, num ritual em que não pôde saciar as crianças que tão pouco lhe pediam: as páginas de textos impressos sobre a dignidade sonegada. O luto reservou-se, breve como todos, para os que lhe descortinaram o olhar enquanto tentava dar forma à inspiração. Sobrevém a inquietação perante a possibilidade de que com a memória de Craveirinha venha também a morrer a identidade do José, e com eles os momentos que ambos legaram às gerações consoladas nas companhias privilegiadas pela própria natureza do seu nome. A inquietação da probabilidade de que lhe sigam o exemplo, de que abandonando a sua aldeia o rascunho de uma vida não seja suficiente para ilustrar o chão fértil reduzido a pó sobre as ossadas do império. A morte de Craveirinha sabe a mau presságio, como dia num crepúsculo sem regresso, como préstito fúnebre em que todos vão a jazer. À frente, vertendo prantos sinceros, as gerações que florescem sobre membros improvisados de pau, sem horizontes pelo olhar cerceado, com o medo espelhado na magreza dos corpos. À distância do seu estatuto, os que suportam as despesas das exéquias com o testemunho da vida exemplar do cadáver. Como se fosse possível o milagre perante a realidade da morte. Ocultos, elevando orações de penitência, figuras sinistras cujo trajar despropositadamente vincado as denunciam, pago da cabeça aos pés pelos estilhaços que povoam, num ensurdecedor cenário, a dor bem real daqueles a quem o José amou. E outros tantos, dedicados na tarefa de ensinar os nomes aos discípulos, de enxugar as lágrimas que têm por confidentes, de estancar o sangue das chagas e sarar feridas purulentas, de resgatar as vítimas que os elementos inesperados desafiam, ao saberem da partida de Craveirinha prestam-lhe homenagem no quotidiano das suas missões. A poesia de Craveirinha irradiou do coração do José no palco belo que respira pobreza. Palco mal iluminado, de forma deliberada, para aliviar consciências, para manter na penumbra os actores virulentos que apenas dedicam a sua presença num outro palco. Dividem preces pela redenção que não merecem nos intervalos de magras esmolas, sob a exaltação que lhes define a imagem propalada pelos detentores de poderes mediáticos. Quando se fizer história não haverá registos dos íntimos desejos do José Craveirinha, talvez sobrevenha a condescendência pelas suas ousadias literárias e a fatalidade, como se de individualidade se trate, será a responsável oportuna pela negligência dos parentes afastados dos poetas africanos. A verdade relativa que permanece é a de que a nobilitação de Craveirinha apaga a incapacidade para reconhecermos ao José a dignidade de que não o podemos privar, a de que os interlocutores que gerem as vidas dessa aldeia distante, alheios às misérias dos que afirmam representar, foram talhados à medida da mediocridade que não admite a superioridade do pai emigrado do José, a de que já nem referência merecem, por parte dos arautos do lusitanismo, os que albergam no dia a dia resquícios de uma mesma e ancestral língua. A lusofonia não tem intérpretes, a selva não conhece actores; condoemo-nos com cidades destruídas e vazias, com as colheitas perdidas entre as raízes mais profundas e as bocas ávidas do pão; a dor é culpa alheia, culpa de uma cultura primitiva, a dor é menos intensa do que a nossa.

A Morte de (Jonas) Savimbi

Morreu Savimbi. O inimigo que morreu, ao longo das conversas e confidências que partilhou sob as estrelas que iluminam as noites da Jamba, era reconhecido pelos que também exprimem os valores da fidelidade como Jonas. Não raro, lhe terão ouvido palavras que, insistentes, apelavam à violência como consequência do diálogo nunca reconhecido como possibilidade, à luz bem mais intensa de refúgios citadinos. Nesses negros recantos de uma pátria dividida pela razão das armas, Savimbi não adivinhava o corpo inerte coberto de moscas como imagem primordial da paz desejada. Nem a sua morte serviu de benesse providencial, nem das estrelas caiu o pão sobre os refugiados de guerra em torrencial e promissora chuva que pudesse alimentar as fontes da paz. Nem os pachos de ouro negro sararam maleitas que o ódio recíproco sempre provoca. Savimbi saberia, destemido, que enfrentava exércitos sofisticados à custa de expressar, com a arma de uma sabedoria reconhecida com relutância, ideais que, sem serem letais, lhe conferiam o poder efémero, injustamente menosprezado. E Jonas morreu prisioneiro de um campo de batalha que tratava por tu, como ironia que reside na traição daqueles a quem amou. A distinção forjada que mereceu consiste na esperança de que à morte do Jonas sobrevive a capitulação dos soldados de Savimbi. Prenda inquinada dos protegidos de um clube anónimo, que joga e aposta na obediência aos interesses que relegam a vida destruída de um povo para o campo distante da ignorância. A padiola improvisada para o cadáver do inimigo não constitui encargo que prive os heróis da sua artesanal concepção da opulência em que vivem a sua vitória virtual. O Jonas teve honra de perseguição aturada, Savimbi devolveu, com o exemplo do estertor, a esperança no impossível. Como se tivesse em testamento abençoado os milhões de compatriotas que vivem o inferno bem terreno da doença, da mutilação, da privação dos entes queridos dizimados e enxotados nas veredas da vida para territórios estéreis e inóspitos. As moscas e o rejubilar pela morte de Savimbi, por parte de quem vive a ignorância do destino comum, terão sido a essência das condolências imperiosas e dos discursos com o estigma banalizado da demagogia. Jonas trazia consigo o brilho do olhar ao enxergar distantes paragens, palavras de difícil argumentação e umas botas que já não protegem os pés cansados de tão longa jornada. E reivindicou o brilho das pedras preciosas para todos, como reivindicou os demais tesouros em que a terra é pródiga. Savimbi denunciou a verdade de um país, que podendo albergar com justiça todos os filhos, foi e é um país sem tecto que os proteja da expiação de crimes jamais cometidos. Mas Jonas Savimbi provou que, perante a injustiça, o ódio brota sem esforço, em torrente contra a vaga que cobre os direitos elementares. O brilho do olhar adivinhava-se como herança dos meninos assustados, legado que se embrenha pela vida até se converter em expressão da determinação de adulto. Estrela cadente desintegrada na atmosfera densa dos conflitos, a luminosidade de criança transfigura-se na tempestade de sentimentos com os raios impiedosos da revolta. Ainda hoje a borrasca preenche o vasto firmamento, único limite de multidões entregues à inanição dos corpos e dos espíritos. E à distância do esquecimento vão sendo urdidos negócios e reflorestada a superioridade da cooperação, nos ermos campos a que os povos explorados não logram chegar, mitigando pedidos de perdão pelo passado de convivência. Os oceanos são mais largos, divididas as cores dos astros e dos caminhos de afoitos marinheiros; nos campos minados sopram ventos de paz podre; soçobram os méritos dos pioneiros; ao sabor de óbitos providenciais preenchemos a agenda da informação.

As Tragédias Ocultas

O tema da morte, da piedade despertada face ao anúncio público de episódios que têm a marca individual ou colectiva das mortes anunciadas ou imprevistas, é um tema assíduo no quotidiano das páginas jornalísticas. Entre o acidente fortuito, a catástrofe humanitária e o epitáfio das figuras públicas, as fronteiras do impacto social que provocam não são tão nítidas quanto a forma incisiva que a veiculação destas constantes conhece. A morte do artista, do político, dos que se distinguiram na expressão social das suas actividades, tem efeitos de comiseração, impacto trágico na comunidade, suscita o debate público no plano das relações comuns que não encontram paralelo na consciência dos cidadãos quando se trata de evocar um holocausto em permanente e latente actividade. A guerra é reconhecida como algo trágico, insensato, e em simultâneo como algo necessário ou inevitável. A violência das forças da natureza é espectáculo quando se manifesta. O óbito singular de um ídolo provoca o sentido luto. E com os ídolos mortos a história se encarrega de desvanecer os ideais que os identificam ou consagrar a sua memória na luta persistente por esses mesmos ideais. Com a remoção dos estragos das catástrofes, com os corpos enterrados ou a dúvida acerca do seu destino, sobeja a expressão da heroicidade da reconstrução da vida, da esperança em que a natureza seja benévola, da dor que os entes próximos possam viver, mas que é só deles. O significado próprio do fim da vida de personagens públicos merece a atenção mediática em função do que a ocorrência possa suscitar. Morre o poeta louva-se a obra, morre o político, o militar, especula-se acerca da guerra e da paz. E como se não bastasse maltrata-se a notícia omitindo que com o poeta pode estar a perecer a poesia ou que com o político a guerra ressuscita como aviltamento das suas intenções de paz. De acordo com estes tópicos se entendam os dois textos que abrem, em simbiose, as páginas que pretendem devolver à tragédia alguns dos lugares que ocupa no tempo presente.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 165
Ano 16, Março 2007

Autoria:

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

Luís Miguel Brandão Vendeirinho

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