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A leitura

Uma coisa é contar, outra coisa é estar lá para ver, como eu vejo todos os dias, e a senhora havia também de ver.
O meu homem até que não é bem má pessoa, que ele trabalha todos os dias e tudo, mas só que à 6ª feira é sempre a mesmas coisa, que ele é mesmo assim. É mesmo o feitio dele, e não há nada a fazer? à 6ª feira ele vai logo para o café e depois não sei mais para onde e então ele bebe, bebe, bebe e quando chega a casa ele parte tudo que não há ninguém que o aguente?
Eu nem é por mim que até já estou habituada mas é por causa do meu Carlos e a senhora diz que ele aqui está sempre a causar problemas; e é verdade, ele está sempre muito revoltado que nem sei o que se pode fazer?Eu já lhe disse, filho, tu precisas da escola e a escola é para o teu bem, tens que ser educado para os professores e não podes faltar, mas ele diz que sim mas depois é sempre o mesmo?Mas eu gostava é que a senhora falasse com o meu homem; não sei se pode falar com o meu homem, mas nem sei se ele ia ouvir, se calhar nem cá vinha para falar com ninguém que ele diz que à escola não vem que isso é coisa das mulheres, e só cá vem se for para por o rapaz na ordem ou então para meter algum professor no seu lugar que ele agora disse que até vai ver como é, no fim do ano?, que já sabe que os pais vão ter que avaliar os professores e que a ele ninguém o manda calar. E é verdade que o meu homem não se deixa ficar com quem quer que seja e só é pena aquele feitio dele, porque eu sei que ele nem é mau, no fundo nem é mau e gosta de nós, de mim e do meu Carlos, que somos só os três que eu tive umas complicações depois do meu Carlos, até estive quase a morrer e agora até nem posso ter mais filhos.
Mas isso de avaliar os professores, eu sei que falaram na televisão, mas eu acho que isso é um bocado impossível. A senhora já vai ver porque é que eu digo isto, que é por isso também que eu vim para falar do meu Carlos, que é muito bom filho mas que eu sei que ele é um revoltado mas também como não havia de ser: o pai, quando chega à noite e está menos bêbado e nem vai partir tudo em casa, nem nada, traz o jornal de lá do futebol e diz ao meu Carlos para ele lhe ler porque o meu homem não sabe ler. È verdade que ele assina o nome mas depois não consegue ler e eu nem posso dizer que sei ler porque ele fica cheio de raiva e desata a bater-me; mas pede ao meu Carlos e a verdade é que o meu filho aprendeu a ler muito cedo, na escola primária já lia bem como tudo e agora ainda lê melhor. Mas o meu homem nem sempre gosta do que o meu Carlos está a ler e então começa a dizer que ali não diz nada daquilo e desata a chamar-lhe mentiroso, burro e muitos outros nomes que eu nem digo?e se o meu Carlos diz que é mesmo aquilo que está lá escrito, e não aquilo que ele queria que estivesse, então ele desata a bater-lhe aos murros na cabeça e aos pontapés e eu nem sei como o posso parar? E todos os dias é isto, o meu Carlos tem que ler o jornal ao pai e se não for o que ele quer ouvir então já se sabe que é porrada e mais porrada. E não é que ele seja mau homem, que no fundo até gosta de nós e quer que o meu filho faça a escola e estude e tenha um futuro mas aquele martírio do jornal e do meu Carlos a ler?
A senhora está agora a ver porquê é que o meu Carlos é um revoltado, ele nem gosta da escola porque alguns professores lhe pedem também para ler?e a senhora diga-me, o que posso eu fazer?
A senhora falava com o meu homem se eu conseguisse que ele viesse cá à escola?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 164
Ano 16, Fevereiro 2007

Autoria:

Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto
Angelina Carvalho
Colaboradora do CIIE da faculdade de psicologia e ciências da educação da Universidade do Porto

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