Página  >  Edições  >  N.º 164  >  A educação na África selvagem

A educação na África selvagem
Quando ainda não tinham chegado às aldeias as letras do jornal e do livro, os sons da rádio e as imagens da televisão, era a família a grande fonte dos saberes, que se transmitiam e inculcavam entre as gerações por meio da palavra e do exemplo dos mais-velhos. Durante séculos e até há pouco, esses saberes deram conteúdo a uma unidade orgânica que não sentiu necessidade de fazer o percurso ontológico, moral e técnico que, no dizer de Spengler, leva os povos da cultura à civilização.
Aos idosos era confiada a autoridade de religar ao presente o passado histórico e a tradição, que formatavam a identidade da família e do grupo social a que ela pertencia, assegurando um continuum sem desvios nem oscilações, como se o conhecido e o praticado fossem toda e suficiente resposta às necessidades físicas e anímicas do quotidiano. No povoado e no grupo estava a representação cabal do Universo percepcionado, por aquilo que dos seus mistérios se manifestava nas exigências, sempre as mesmas, da praxis que exprimia as "leis" da continuidade: a conservação da espécie e a acção sobre a matéria.
Inscritas essas "leis" no quadro da Natureza, em que tudo o que tinha vida ou movimento se manifestava dentro da mesma ordem, fossem os bichos e as árvores da floresta, as plantas dos campos e as gentes dos povoados, os humanos só escapavam à linearidade do seu destino ou condição quando o normal era fendido pelo surgimento do imponderável. Então o círculo dilatava-se para dar lugar à metafísica: os espíritos dos mortos e a divindade, preenchendo os vazios de um conhecimento com dúvidas, medos e mistérios - os primeiros tutelando, do além, o desempenho dos vivos que os continuavam, a divindade (distante e informe) como Criador Supremo do que era visível e invisível, conhecido ou suposto.
No sistema endogénico das práticas e das crenças constituíam-se os arquétipos que formatavam a unidade orgânica da família e a identidade nacional do povo: ao chefe eleito, ao pai, à mãe, ao filho, ao parente, ao vizinho, estavam cometidas tarefas e deveres inquestionáveis de respeito e solidariedade.
Como não existiam ainda fontes de conhecimento exógeno ? imprensa, rádio, televisão ? que inapelavelmente introduziriam mudanças no costume (forçando o percurso que vai da cultura à civilização), era nas reuniões da família ou do povo que se realizava a escola falada. E nela figuravam a filosofia, a pedagogia, a biologia e a história, servidas por narrativas e exercícios de inteligência e representação, como as adivinhas e as dramatizações. O suporte teórico era sempre a "história natural" do conhecido e experimentado, com a visão fixista sobre os seres semelhante à que tinha o cientista Carl Linné (Lineu), no século XVIII, ou, três séculos antes, o académico florentino Pico della Mirandola percepcionava o homem como uma redução do macrocosmo, um resumo do Universo.
Quando surgiram os primeiros agentes estranhos veiculando ideias e práticas antes inimagináveis, como a de separar famílias e povos que falavam a mesma língua, para poderem demarcar territórios de conquista, foi como se do céu, em vez das chuvas, caíssem pedras que agitaram as águas até ali tranquilas das lagoas. Vieram estranhos caçadores que dizimavam a caça; madeireiros que abatiam indiscriminadamente as árvores que davam lenha, sombra e fruta; mineiros que esventravam o solo e envenenavam os rios; agricultores que raziavam os terrenos férteis com queimadas devastadoras. E, para compensar os filhos da terra que viviam da caça, da pesca e das frutas do mato, lhes forneciam coisas surpreendentes que já não se trocavam por alimentos ou utensílios, mas por uma estranha coisa de papel ou metal chamada dinheiro.
Era assim a escola da vida dos habitantes das aldeias da África "selvagem", não muito diferente da que, na mesma época, se praticava nas aldeias remotas de Portugal, onde ainda não existia sequer o simples "posto escolar" administrado por uma "regente" que não precisava de mais habilitações que as da quarta classe.
Hoje, por exemplo em Angola (mas podia acontecer em Moçambique, no Congo ou na Zâmbia), mesmo nas cidades já batidas pelos ventos da "civilização", ainda se podem ver alguns velhos, deslocados forçosamente da sua terra-mãe, a contar aos meninos estórias do antigamente. Pensarão eles que a antiga pedagogia já não serve ao presente, em que a escola rural, os jornais, os livros, a rádio e a televisão falam de outras vidas e de outras estórias, introduzindo novos costumes e (pre)conceitos. Mas por vezes não resistem a fazer avisos como este que foi aproveitado para epígrafe dum semanário de Luanda:
"Quando forem abatidos o último animal selvagem e a última árvore da floresta; quando as águas do último rio chegarem envenenadas aos campos e às aldeias, vós sabereis que o dinheiro não serve para comer.

  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 164
Ano 16, Fevereiro 2007

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo