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Cidadania

A cidadania, conquista social e política da modernidade (1), é cada vez mais posta em causa em todo o mundo pelos interesses económicos e políticos dominantes, para o que contribui a tentativa de eliminação intencional da memória de muitas das tradições democráticas e revolucionárias que estão na sua origem, como tem vindo a acontecer nos Estados Unidos e em França.
Situação tanto mais chocante, quando decorreram mais de dois séculos sobre a Revolução independentista anti-colonial americana (1776) e sobre a Revolução Francesa que pôs termo à monarquia absoluta fundada no direito divino, substituindo-a pela soberania da nação identificada com o conjunto dos cidadãos (1789).
Os Estados Unidos, embora libertos da opressão colonial britânica, rapidamente esqueceram o "espírito de 1776", dando lugar a uma política de expansão e de dominação imperialista à escala internacional, que a conquista do primeiro lugar entre as potências mundiais subsequente à I Guerra Mundial (confirmada pela vitória na II, em 1945) só viria a acentuar.
É o que explica o conluio norte-americano com a Grã-Bretanha e com a França na redistribuição das colónias e das zonas de influência das vencidas Alemanha, Áustria-Húngria e Turquia, ratificado pelos acordos diplomáticos (Tratados de Versailles, de Saint-Germain-en-Laye e de Sèvres) que, em 1919 e 1920, sancionaram o termo do primeiro conflito mundial a expensas dos direitos e aspirações dos povos colonizados da África e da Ásia (destacando-se o caso paradigmático dos palestinianos sacrificados aos interesses dos britânicos e dos sionistas) (2), orientação que os Estados Unidos prosseguiriam durante e após o segundo conflito mundial, ao não pouparem esforços para salvaguardar os impérios coloniais das potências europeias devastadas ou enfraquecidas pela guerra, ao mesmo tempo que apoiariam a sua reconstrução através do Plano Marshall (1947), a fim de as preservar contra a ameaça da revolução (Europe first policy) (3).
Por sua vez, o passado revolucionário da França não a impediu de afogar no sangue as jornadas revolucionárias dos trabalhadores em Junho de 1848 e a Comuna de Paris em 1871(primeiro governo operário da história), ou de procurar perpetuar, por todos os meios, a sua opressão colonial na Ásia e em África, sobretudo na Indochina (até 1954) e na Argélia (até 1962), apoiando-se na banalização da guerra e da tortura.
Hoje, os Estados Unidos, ao mesmo tempo que procuram dominar o mundo, reforçando a dependência económica e política de todos os países e ameaçando destruir os sistemas de assistência médico-social, educativo e os direitos laborais com as privatizações e a desregulamentação, promovem a exclusão social dos povos, não hesitando em colonizar regiões de interesse estratégico (Iraque, Palestina).
Enquanto que a França, como os seus congéneres europeus, para além dos ataques aos direitos sociais resultantes da luta bicentenária dos cidadãos, desmantela a escola laica e ataca a memória e os direitos dos muçulmanos e de outras minorias étnicas em nome dessa mesma laicidade, através da proibição inquisitorial de símbolos particulares de identidade religiosa em estabelecimentos de ensino públicos (véu), da apologia oficial do colonialismo nos programas escolares e da exclusão social generalizada dos jovens de origem norte-africana e dos imigrantes.
Se os povos de todo o mundo não resistissem a estas agressões aos seus direitos e à memória da luta pela sua conquista não estaríamos longe de perder o estatuto de cidadãos e de regressar à condição de súbditos(4), antecâmara da condição de escravos.

Notas
1) O estatuto de cidadão identifica-se com a situação do «indivíduo que, como membro de um Estado, usufrui de direitos civis e políticos garantidos pelo mesmo Estado e desempenha os deveres que nesta condição lhe são atribuídos» (HOUAISS, António e VILLAR, Mauro de Salles, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa, Círculo de Leitores, 2003, Tomo II, p. 926)

2) MACMILLAN, Margaret, Les artisans de la paix. Comment Lloyd George, Clemenceau et Wilson ont redessiné la carte du monde, Paris, JC Lattès, 2006

3) GUIMARÃES, José Marques, A política dos Estados Unidos para a África: Desde a II Guerra Mundial até ao princípio dos anos sessenta, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1998

4) A condição de súbdito corresponde à situação social daquele «que está submetido à vontade de outrém, ao qual deve obediência e respeito, sendo usado especialmente em relação aos habitantes de um país governado por rei, sultão, imperador»(HOUAISS, António e VILLAR, Mauro de Salles, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa, Círculo de Leitores, 2003, Tomo VI, p. 3395), ou daquele(vassalo) «que, no sistema feudal, estava em relação de vassalagem a um suserano»(Idem, ibidem).


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 164
Ano 16, Fevereiro 2007

Autoria:

José Marques Guimarães
Universidade Aberta, Lisboa
José Marques Guimarães
Universidade Aberta, Lisboa

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