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Os professores também têm o seu inferno

«Assim me disse um dia o diabo: `Deus também tem o seu inferno: é o seu amor pelos homens?.
E ultimamente ouvi-lhe dizer estas palavras: ?Deus morreu, matou-o a sua piedade pelos homens?.
(F. Nietzsche; Assim falava Zaratrustra)

No dia 24 de Janeiro, numa conferência de imprensa, a senhora ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, anunciou a criação do "Prémio Nacional de Professores". O prémio de «melhor professor do ano» dirige-se, segundo informou Sua Excelência, « a todos os educadores de infância e docentes dos ensinos básico e secundário, de escolas públicas e privadas». Ficam assim excluídos, deste novo acontecimento nacional, os professores dos ensinos politécnico e universitário. E fica logo aqui registada a primeira curiosidade que é a de saber que razões terão levado as autoridades da educação nacional, a excluir do espectáculo, uma parte significativa do professorado.
O concurso, destinado a «reconhecer e galardoar aquele que contribua de forma excepcional para a qualidade do sistema de ensino», não espanta, sobretudo por ocorrer no tempo em que ocorre e por ser promovido por quem é. No princípio, a ministra exigia aos professores umas «graças» mesmo sem graça, agora, pede-lhes «gracinhas de excelência». Uma questão de requinte do espectáculo educacional.
Não se estranha a proposta e até se compreende. Por cá estão na moda os apelos lancinantes do Primeiro-Ministro à excelência em toda a linha. Não importa apenas fazer bem, temos de ser os maiores, excepcionais, espectaculares, modernos! Estão por isso na moda os concursos e a corrida dos portugueses ao direito de inscreverem o nome no livro dos recordes. Lembremos apenas, a maior feijoada do mundo, o recente recorde de sócios do Benfica, a maior árvore de Natal de sempre para as bandas de Lisboa e o maior espectáculo pirotécnico do mundo na Madeira. Cá na parvónia é assim. Detestamos organizar e tratar bem as coisas do dia a dia, mas adoramos o foguetório. Ora está na cara que a Senhora Ministra não entende nada do dia a dia das escolas e dos professores, nem isso lhe interessa, mas pela-se pela promoção do excepcional, do fora de série, do espectáculo mediático, da propaganda. Não admira, nem destoa, que os serviços das escolas e do ministério domem e levem os seus professores amestrados a um concurso nacional. Se há concursos de caninos porque não de professores? Ao fim e ao cabo todo o animal tem o direito de se mostrar e, todo o dono, de se regozijar publicamente com «as graças» daquele que amestrou.
Que consideração pela pessoa dos professores permitirá que um governo lance esta brincadeira e, um júri, que se quer de pessoas idóneas, decida participar no desrespeito? Isto tem alguma coisa a ver com a excelência ou sequer com a competência?
Na Índia, ultrapassando a população mais de mil milhões, em cada sete ou oito milhões de alunos há um de excelência que escapa à normalidade da vida e arranja um bom emprego. É a excepção. A excelência, o fora de série, não resulta nem ali nem noutro lugar qualquer de actos de propaganda e de voluntarismos, mas da quantidade e do trabalho sério e cooperativo. Os pais indianos, pensando em si e nos filhos, apostam na educação com a convicção com que nós por cá apostamos no euromilhões. Ambos temos a esperança de ter sorte no jogo escapando assim à normalidade da vida. A Ministra e o seu chefe, não percebem que a excelência é uma excepção, e que, mesmo ela não se adquire com actos volitivos e de propaganda, mas resulta da quantidade e do trabalho sério, colectivo e continuado. Depois de terem dado cabo dos poucos princípios de dignidade que havia na carreira dos professores e depois de terem reduzido à miséria a carreira destes, pensam que a propaganda e a manipulação dos professores é tudo o que é preciso para criar uma nova imagem profissional. Até acreditarão que melhorar o ensino e a profissão docente é tudo uma questão de propaganda e de bravata, quando na realidade é uma questão de trabalho [não de fingimento], de empenho [não de construção de imagem], de cooperação [não de competição], de seriedade e dignidade [não de concursos], de reconhecimento de direitos [não de pau e cenoura].
O discurso retórico do poder, nos últimos anos, primeiro com Durão Barroso e associados, brevemente prolongado por Santana e amigos, e retomado com redobrado vigor por Sócrates, vai no sentido de fazer com que os portugueses retomem a normalidade da aceitação passiva de séculos de desprezo e desigualdade, da pobreza de sempre e da subserviência ao poder cimentada no salazarismo.
O Salazarismo continua bem vivo na nossa sociedade. Fomos formados num modelo sócio-psicológico de subserviência e autoridade. Os pais batiam nos filhos por dá cá aquela palha. As mulheres também levavam se franzissem as sobrancelhas. A polícia usava o cassetete a torto e a direito. O dono do poder, sentado em São Bento de manta sobre os joelhos, todos via, todos controlava, a todos exigia respeitinho aos superiores, a todos pregava, de todos sabia. Esta herança passaram-na os portugueses às novas gerações, e perdura.
O 25 de Abril, e a própria entrada na antiga CEE hoje UE, não foram mais do que tentativas falhadas para quebrar esta longa tradição de hierarquia e dependência. Assistimos, nos últimos anos, a uma arremetida dos velhos poderes no sentido de reconstruírem uma sociedade de servos e senhores. Retirar direitos sociais e de cidadania, destruir carreiras profissionais assentes na autonomia e nos direitos de participação, aumentar exigências de servidão, promover o autoritarismo nos locais de trabalho e de vida, diminuir rendimentos, são algumas das medidas objectivas tomadas. Mas o Estado e a nova classe dirigente precisa de mais. Precisa de «por o povo no seu lugar», e o lugar do povo, já se vê, foi sempre lá em baixo, bem em baixo, de olhar baixo e sorriso subserviente e reverente. É também aqui que se encaixam os concursos como o de «o melhor professor do ano» como antigamente se encaixavam os «chás-de-caridade». Para cada época os seus dependentes e os seus pobres. Aprendam professoras e professores... respeitinho, muito respeitinho, o respeitinho é muito lindo, abanem os rabinhos e sorriam candidamente ... os nossos novíssimos chefes só querem o nosso bem.
Este "Prémio Nacional dos Professores" é mais um elemento destinado a domar os professores. Insere-se no plano da promoção da desigualdade entre seres humanos: há os que sabem como devem ser os professores e os que, à custa do pau e da cenoura, terão de adivinhar os desejo do domador. É o plano da humilhação, da desconsideração da classe como tal, do amesquinhamento e do subjugar para fazer ceder.
Num anterior editorial, lembrei como os domadores põem os ursos de circo a dançar. Para os pôr a dançar o domador prepara-os, ao ritmo da música, batendo-lhes com um pau coberto de espinhos. Se dançam a contento do domador, este deixa de lhes bater e premeia-os dando-lhes comida. De contrário, a tortura continua, e à noite os ursos voltam para a jaula de barriga vazia. Por cansaço e medo, medo das pancadas e da fome, os ursos aprendem a dançar à voz do dono. Do ponto de vista do domador isto é «excelência» e bom senso. Do ponto de vista do animal, é sobrevivência e subserviência.
É assim que o povo português está a ser amestrado pela novíssima classe dominante. É este o sentido do «Prémio Nacional de Professores».

(Ainda sobre este tema, ler comentários na página 31)


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 164
Ano 16, Fevereiro 2007

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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