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Recomeçando...

Recomeçamos a coluna Reconfigurações um ano após o desaparecimento de um dos seus principais entusiastas, Stephen R. Stoer. Steve deixou-nos, porém, este gosto de fazer coisas em conjunto, sem pactuar com consensos fáceis, e, enquanto sociólogo e interventor, de persistir na desconstrução daquilo que surge como insustentavelmente sólido, como um destino inelutável. O grupo de pessoas que, em 2002, reunimos para mensalmente escrever analiticamente sobre as reconfigurações sociais, económicas, culturais e políticas em curso, retoma agora este projecto (1). É a nossa forma de, também assim, continuar com ele a glosar o tema da conversa de Alice com o Gato de Cheshire:

" Poderias dizer-me, por favor, que caminho hei-de tomar para sair daqui?
- Isso depende do sítio onde queres chegar! - disse o Gato."

De facto, os projectos que se vão desenhando como caminhos possíveis de desenvolvimento para as políticas sociais, pelo menos em Portugal, parecem encontrar-se presentemente numa situação muito peculiar, a de serem apresentadas como 'sem alternativa'. Este consenso desesperado em torno do caminho único encontra ? de um modo igualmente desesperado? ? para se justificar, ora fundamentos 'técnicos', ora fundamentos de oportunidade. Os técnicos remetem para a consistência 'científica' das análises que, sobretudo, os economistas lhe outorgam, os de oportunidade para a 'consciência histórica', veiculada sobretudo pelos políticos, de que não é possível adiar mais as reformas. Este consenso reflecte-se na mansidão trágica com que o governo e as oposições (mesmo com as forças políticas proponentes de caminhos mais alternativos?) se têm vindo a relacionar. Tudo se parece passar como se a margem de manobra fosse mais do que mínima e a gestão dos silêncios pragmáticos fosse a arma política mais adequada de lidar com esse discreto consenso.
Em tempos, Margareth Tathcher profetizara, e assumira como guião político, o fim da sociedade e o surgimento dos indivíduos como unidade social básica. Ambos, a profecia e o guião, estão a realizar-se. Esta individualização tem vindo a ser vista e interpretada quer como condenação dos cidadãos a serem indivíduos e responsáveis primeiros pelo sucesso/fracasso das suas vidas, quer como uma forma pela qual os indivíduos se apropriam da condução das suas vidas, escolhendo o tipo de educação, de cuidados de saúde, de protecção social que pretendem, etc. Não obstante, quer interpretada como 'condenação', quer como reclamação cidadã das próprias escolhas, a emergência do indivíduo como unidade social básica parece ser inquestionável e consensual em muitas análises sociológicas. Mesmo quando a reclamação do direito de escolher no âmbito das políticas sociais é protagonizada pelos grupos, o social para que remete é o da identidade, o da diferença, desse grupo em relação ao todo social em que se integra.
Esta configuração social e política está a ser, ao mesmo tempo, activada e ampliada pela intensificação do processo de globalização económica, pelas formas emergentes da organização do trabalho, pelas novas (e as velhas?) sociabilidades e pelos novos (e os velhos?) movimentos sociais.
Noutra coluna tratarei o tema da reconfiguração da representação política, por ora, gostaria de chamar a atenção para a hipótese de poder ser nos intervalos, nas fracturas, nas falhas subtis nos fenómenos que acabámos de referir que se poderão desenvolver alternativas reais e credíveis e abandonar assim o atoleiro viscoso deste panorama 'sem alternativa'. Na falha entre a necessidade de melhorar os níveis de produção de riqueza e as novas formas de organização do trabalho, o sindicalismo poderá reconfigurar-se sem as reivindicações laborais surgirem como irrealistas ou como meramente funcionais aos interesses empresariais e no intervalo entre a condenação dos cidadãos a serem indivíduos e a reclamação de cidadania por parte dos cidadãos e dos grupos, poderá reinventar-se muito do exercício político da cidadania.
Há cinco anos atrás, quando iniciámos esta coluna, dizíamos que era nosso objectivo questionar - à semelhança de Alice - o "caminho a tomar" e que iríamos procurar, neste espaço, perscrutar como é que o estado, o mercado, a comunidade, os estilos de vida, a cidadania e a própria intimidade se estão a reconfigurar e como é que, nesse processo, nos é dado construir, reconstruir ou reinventar caminhos. É nesse caminho de reinvenção em que estou agora a pensar. Um caminho modesto, porque dificilmente há hoje espaço na nossa capacidade de esperança para grandes narrativas libertadoras, mas radicalmente reflexivo, no sentido em que, perante a realidade estatisticamente construída com que nos confrontamos, podemos actuar nas fracturas, nas falhas, nas incoerências. Poderá dizer-se que tais alternativas 'só' se desenham nos contornos de um sistema global que, praticamente, se gere a si mesmo. Todavia, o que determina a radicalidade da alternativa não é o terreno em que a luta acontece, mas essa mesma radicalidade.
É para este projecto que esta coluna pretende contribuir. Recomecemos, pois.

1) A equipa, no seu núcleo duro de colaboradores, é a mesma, mas com algum sangue novo: Roger Dale, (Universidade de Bristol), Susan Robertson, (Universidade de Bristol), Xavier Bonal (Universidade Autónoma de Barcelona), Fátima Antunes (Universidade do Minho), Fernanda Rodrigues (Universidade Católica Portuguesa), Mario Novelli (Universidade de Amesterdão) e António M. Magalhães (Universidade do Porto). Mário Novelli, o novo colaborador, é um investigador especializado nos novos tipos de activismo político, sobretudo na América Latina.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 163
Ano 16, Janeiro 2007

Autoria:

António M. Magalhães
Univ. do Porto
António M. Magalhães
Univ. do Porto

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