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Verdades e conveniências e outras consequências

Foi noticiado em alguns órgãos da imprensa escrita a apresentação de estudos que apontam para a "selecção de alunos nas escolas públicas"; nessas notícias − a par de afirmações gerais atribuídas aos investigadores como "O sistema discrimina os alunos por escolas, por turmas e por vias de ensino", factos amplamente documentados por estudos clássicos e recentes, nacionais e estrangeiros −, aparecem igualmente registados outros argumentos bem mais discutíveis do ponto de vista do conhecimento e da investigação disponíveis. Por exemplo, em relação à fabricação de turmas, atente-se na citação «O investigador afirma que a situação decorre muitas vezes de "interesses de professores, que querem os melhores alunos e poucos problemas, e da própria pressão dos pais, que querem o melhor para os filhos". E são os encarregados de educação das classes médias, altas, "com melhor conhecimento do funcionamento das escolas, que têm essa capacidade de pressionar"» (1). Tomado à letra, este extracto da notícia recorda uma tira em que o Calvin procura desesperadamente ajustar os olhos para uma perspectiva linear que lhe permita ver o mundo sem os ângulos e as arestas incómodos dos cubistas (2). Na verdade, se é incontestável que nas escolas têm lugar processos de fabricação de públicos e turmas, não é menos inegável que justificar a situação daquela forma lacunar equivale também a fabricar uma explicação conveniente travestida de investigação e conhecimento científicos.
Entendamo-nos: não conheço (ainda) os estudos apresentados e tenho todos os motivos para pensar que são sérios, rigorosos, pertinentes, relevantes e comprometidos com exigentes parâmetros teórico-metodológicos e éticos. Outros trabalhos que conheço de investigadores mencionados na notícia em questão sustentam esta minha convicção e expectativa. Quanto à fiabilidade de certas notícias saídas na comunicação social, o caso é, às vezes, muito diferente e preocupante. O que quero aqui discutir é a difusão pública irresponsável de meias-verdades e ideias truncadas, como algumas das que atrás se referem, que incitam a explicações simplistas, deficientes e erradas. O facilitismo e a preguiça na compreensão do mundo real, para além de interessados, têm um alto preço em dramáticos erros, tremendas injustiças e abomináveis tragédias que todos os dias nos entram pela casa dentro. Vemos, ouvimos e lemos?.
Desde 2000 que estudo individualmente e participo em equipas que têm investigado esses processos de fabricação de públicos, de agrupamentos de alunos, de resultados, de percursos escolares, de desigualdades. E, sem dúvida, há actores individuais e colectivos aí envolvidos e actuando nesses sentidos. Agora, o que esses estudos têm também mostrado, como suponho que acontecerá com aqueles agora apresentados e noticiados, é que essas opções, essas acções não ocorrem num vazio social, como é óbvio. Elas acontecem numa sociedade que efectiva certas opções culturais e não outras; que verifica determinadas relações de poder; que favorece algumas classes e categorias sociais. Por exemplo, aquelas acções e opções têm lugar num quadro de refluxo do processo de democratização do sistema de ensino: esta não é agora vista como uma prioridade e uma promessa ainda imperfeitamente realizadas, mas como devendo ser disciplinada (contrariada, diriam eles) pelo retorno aos exames, pela perseguição dos palmarés e pódios (que premeiam resultados, de preferência calculados com umas simples e honestas contas de somar e dividir, sem olhar a complicados processos e meios).
Então, aquela fabricação, de públicos, de agrupamentos de alunos, de resultados, de percursos escolares, de desigualdades, tem como rosto mais visível os seus actores mais próximos (ainda que porventura não sejam os mais ou únicos determinantes, não sendo também irrelevantes): escolas, professores e pais. No entanto, essa fabricação depende das escolhas e projectos societais, que afirmam e efectivam a educação comum para todos ou, ao invés, adoptam uma escola de geometria variável, que funciona segundo o lema: a cada um o seu lugar (em português popular, "cada macaco em seu galho") e apurem-se os "melhores"; que entronizam a solidariedade e a justiça ou a competitividade e a concorrência; que criam e alimentam preconceitos em relação ao outro, seja ele quem for; que, em tempos de escassez, fazem dos pais e mães melhor posicionados uns animais ferozes que procuram abocanhar muitos e os melhores bocados para os seus filhos.
A fabricação de que falamos depende ainda das políticas educativas (do retorno e destaque aos exames; das funções atribuídas a estes − filtrar quem acede ao nível curricular ou de ensino seguinte; da diversificação hierarquizante e exacerbada de vias e cursos; da alocação do conhecimento técnico, tecnológico e prático a percursos destinados aos malogrados na escola; da fetichisação e prioridade aos resultados em prejuízo das necessidades dos alunos; da liberalização das matrículas desamparada de mecanismos reguladores; dos critérios (que são opções político-educativas) indicados pela tutela para regular as matrículas, a formação de turmas, a atribuição de professores.
Esta particular fabricação depende ainda da miscigenação ou segregação das populações e dos territórios: a guetização é, antes de mais, social, política, territorial e também escolar. É ainda importante o tipo de regulação local, partilhada, entre outros, por Direcções Regionais, Coordenações de Área Educativa e escolas. Aquela pode ser mais comprometida com um certo equilíbrio na distribuição de factores favoráveis e das dificuldades ou mais voltada para a concentração polarizada de vantagens e desvantagens, frequentemente mascarada de excelência ou desqualificação e de mérito ou opróbrio (das escolas, dos professores, dos alunos), conforme os casos; essa fabricação tem a ver ainda com opções profissionais, modelos de profissionalidade, condições de exercício do trabalho docente, opções e modelos pedagógicos.
Investigações desenvolvidas recentemente têm-nos mostrado "um incerto retrato multifacetado" de escolas e professores, presos em dilemas "entre o ideal educativo e a realidade incontornável", "entre o posicionamento e a personalização" que a escola é chamada a assumir face aos seus alunos. A performatividade e a diversidade são os termos de uma equação que escolas e professores devem resolver e para a qual constroem respostas, como a escola exigente que estudámos; aqui, o "ensino orientado para o exame" associava-se a "uma prática docente dividida entre convicções e resultados", "uma experiência juvenil cindida entre a cooperação e a humilhação", "uma cultura da performatividade competitiva, de que fazem parte o império da nota, a obstinação do desempenho, o imperativo dos resultados, a obsessão da competição, a corrosão ética, a degradação da convivialidade, a adulteração da vida".
Alguns trabalhos apontam que, "Confrontadas com a necessidade de gerir a diversidade de públicos, e num contexto marcado pelas escassez de recursos e pelas teias burocráticas que enleiam a sua acção, as escolas têm de encontrar modos de "equilibrar" a prossecução do interesse geral e a resposta às crescentes pretensões e reivindicações particulares de segmentos cada vez mais significativos de encarregados de educação. Estes, por sua vez, através das várias escolhas que protagonizam (de cursos, de escolas, de turmas, de opções e até de professores) e dos investimentos paralelos que realizam numa grande panóplia de produtos e serviços (por exemplo em "explicações"), procuram garantir o acesso privilegiado àqueles bens escassos" (3).
Outros estudos ainda vêm "salientando a negociação e a construção de compromissos entre solicitações, critérios, interesses e actores, a diversidade de configurações entre e até intra escolas, a natureza precária e por demais desequilibrada destes compromissos, frequentemente trilhando sinuosas vias de direccionamento de vantagens cumulativas procurando dar o melhor aos melhores, fazendo o possível por todos, numa acentuada orientação meritocrática, indisfarçavelmente cúmplice de um certo darwinismo social impulsionado por opções sociais e culturais que recentemente vincaram clivagens existentes de poder e recursos" (4).
A lista é longa, porque o que os diversos estudos (incluindo aqueles em que participamos) mostram é que a fabricação de públicos, turmas, resultados, (des)vantagens e desigualdades escolares envolve uma rede densa de processos e factores sociais. A não consideração destes tem vindo a desembocar em indigentes ideias simples como aquela da Ministra da Educação, posteriormente desmentida, que terá publicamente atribuído a responsabilidade pelo insucesso escolar aos professores. Surpreendente candura vinda de uma socióloga!...
Aquela teia de processos, factores e actores, individuais e colectivos, exige um conhecimento global e detalhado para que seja possível desenredar linhas de acção que não se limitem a indicar culpados convenientes, os malandros do costume, ainda que estes pareçam postos a jeito. A difusão e eco públicos da investigação científica são hoje elementos estruturantes do nosso viver colectivo e reflexivo (5); quando tal se reduz à disseminação de um conhecimento de conveniência, o que fica é sempre um conhecimento pobre que não passa de um pobre conhecimento do ponto de vista da sua relevância educativa e social.
(E se quisermos ainda alargar a conversa sobre o que tem isto tudo a ver com democracia e cidadania podemos sempre regressar ao ensaio sobre a lucidez do Saramago?está tudo lá?)

Notas
1) Jornal Público, edição de 7 de Dezembro de 2006, p. 22.
2) Jornal Público, edição de 6 de Junho de 2004, p. 63.
3) Fátima Antunes & Virgínio Sá (2006a). Estado, escolas, famílias: públicos escolares e regulação da educação. Uma discussão exploratória. In Actas do VII Colóquio sobre Questões Curriculares/III Colóquio Luso-Brasileiro, "Globalização e desigualdades: os desafios curriculares". Braga: Universidade do Minho/IEP/CIED (edição em CD-ROM).
4) Fátima Antunes & Virgínio Sá (2006b). Dar o melhor aos melhores e fazer o possível por todos. A distribuição dos professores pelas diversas categorias de alunos (texto policopiado).
5) Anthony Giddens (1990). As Consequências da Modernidade. Oeiras: Celta.

Outras publicações e estudos referenciados:

  • Fátima Antunes (2004). Políticas educativas nacionais e globalização. Novas instituições e processos educativos. O subsistema de Escolas Profissionais em Portugal (1987-1998). Braga: Universidade do Minho (caps. 5 e 6).
  • Fátima Antunes (2006). Facetas de democratização: uma escola exigente. In Luiza Cortesão & António Magalhães, "Excelência académica e escola para todos (EXACET)", relatório de investigação apresentado à Fundação Calouste Gulbenkian (documento policopiado).
  • Virgínio Sá & Fátima Antunes (2006). Públicos e (des)vantagens em educação: algumas práticas das escolas e das famílias. Comunicação apresentada ao II Colóquio de Sociologia da Educação e Administração Educacional, "Educação, Diversidades, Cidadanias". Braga, 29 e 30 de Novembro de 2006.

    Jornal Público, edição de 6 de Junho de 2004, p. 63.
    Jornal Público, edição de 7 de Dezembro de 2006, p. 22.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 163
Ano 16, Janeiro 2007

Autoria:

Fátima Antunes
Univ. do Minho
Fátima Antunes
Univ. do Minho

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