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"Deus queira que não me chamem..."

Aulas de substituição

Foi na fase em que as aulas de substituição atingiram o auge da indignação que aquela expressão se tornou um recurso sistemático na boca daquela professora à hora em que saía de casa para a escola: "Deus queira que não me chamem". Mais que a fórmula propriamente dita, era a carga expressiva, entre a fatalidade, a sujeição e a descrença, o que mais impressionava naquela imprecação. Imprecação parece, na verdade, ser o termo certo para definir a atitude e a disposição que acompanhavam a professara no momento em que se dirigia para o local de trabalho de todos os dias.
Imprecação ? lembre-se - é simultaneamente uma prece que se eleva e uma praga que se roga; uma invocação a que se recorre quando se está entre o abandono e a impotência; um esconjuro que se solta, quase em surdina, perante uma ameaça que não se é capaz de identificar e não se sabe evitar.. "Deus queira que não me chamem" Que ameaça é esta? Que há de tão repulsivo neste chamamento?
A carga simbólica que há nesta expressão merece uma aproximação, um exame mais detalhado e atento de modo a poder surpreender-se o que se esconde para lá dos seus limites explícitos...
Comecemos por aquele "que não me chamem". Note-se, em primeiro lugar, que quem "chama" não tem rosto. É alguém que sai da massa anónima de funcionários para cumprir o seu turno e assoma à sala de professores de lista em punho para ler, mecanicamente, a sentença.. E "chama"; isto é, proclama publicamente o "meu" nome perante quem quer que esteja em roda e o nome assim "chamado" ganha uma sonoridade tal que não se poderá jamais simular que não se ouviu ou que não se tem aquele nome, quando mais se desejava não tê-lo. "Chamar" já não é, então, chamar, - aproximar o nome duma causa amiga, - mas, ao contrário, expor a vida (ou simplesmente a figura?) à contingência do acaso, onde tudo pode acontecer, menos o auto-reconhecimento de si. Ser "Chamado" é, assim, experimentar a sensação de ser lançado num espaço estranho, claramente mais estranho que aquele da primeira aula com os "meus" alunos, onde é possível programar a aventura dum tempo que vai ser "nosso". Aqui, trata-se apenas de enganar o tempo que não é de ninguém e está caprichosamente dependente de que "me chamem". É este capricho, esta margem de indeterminação e de acaso que só Deus pode resolver. Então, "Deus queira que não me chamem".
Afinal ? note-se em segundo lugar ? o que poderá impedir Deus de me ser propício, se o reino do arbitrário, do improviso e da irresponsabilidade não tem limites?. Já que não se pode esperar nada da pedagogia, da ciência política, da justiça, da negociação, sequer do bom senso, valha-nos um pouco a benevolência divina...
Esta é um pouco a caricatura possível para uma medida que contribuiu largamente para humilhar, desnecessariamente, a classe profissional dos professores, em alguns aspectos de forma irreparável, quando, na verdade, poderia ter sido objecto de uma verdadeira "revolução silenciosa" dentro das escolas. Bastava para isso que tivesse havido menos voluntarismo, recusa frontal da demagogia, adopção sistemática de tacto político e de sentido da oportunidade e, sobretudo, uma política de verdade e de responsabilidade face aos pais e encarregados de educação que não devem ser confundidos com clientes, nem necessariamente tratados como eleitores teleguiados. O tempo das aulas de substituição exige uma discussão profunda no interior das escolas e os professores serão os primeiros interessados nessa discussão se puderem fazer vencer a ideia que não se pretende mais do mesmo, mas uma intervenção profunda e significativa na formação complementar dos currículos existentes, através de actividades que valorizem as dimensões estética, artística, cívica e cultural, promovendo a iniciativa, a auto-organização, a capacidade de realização e intervenção juvenil no mundo escolar e comunitário.
O recuo admitido ultimamente nessa matéria pelo Ministério relativamente às medidas desastrosas do ano anterior, sendo um sinal de algum bom senso, estão ainda longe das potencialidades que as actividades de substituição comportam em si. Será, apesar de tudo, um pequeno passo nesse sentido? Gostaríamos de pensar que sim.


  
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Edição:

N.º 162
Ano 15, Dezembro 2006

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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