Com o título de ?Fé, Razão e Universidade?, pronunciou o Papa, no passado mês de Setembro, na Universidade de Regensburg, uma conferência de cunho marcadamente académico, em acordo com o local e o auditório escolhidos. Mas esqueceu-se o conferencista de que também estava na ?aldeia global? em que o mundo da comunicação social se transformou no século XX, abatendo toda a espécie de fronteiras, e com esse descuido ou alheamento desencadeou reacções a uma escala exponencial certamente nunca imaginada. Tratando-se de um discurso para universitários feito por um universitário, terá ele apenas contado com a atenção de um destinatário suficientemente informado para apreender o essencial de uma ?lição? teológica cuja complexidade não dispensava o reconhecimento do acidentado percurso histórico das duas religiões que mais profundamente inscreveram, na consciência do chamado mundo ocidental, a antinomia (confessada ou não) imanente na cultura das diferenças. É evidente que o conferencista quis distinguir as religiões cristã e muçulmana entre outras (a judaica, por exemplo), não pelo significado do número dos seus fiéis, - que seria tão atendível como o número de hindus e budistas que coabitam numa mesma humanidade que não se confina entre Cristo e Maomé - mas pelo facto de os percursos dos dois primeiros se terem realizado, até hoje, em linhas paralelas, que ainda não se encontraram. É um facto que ambas reivindicam o primado da verdade da sua fé, baseada num Logos alegadamente inspirado por um Deus universal, porém seguindo práticas tão diferentes e por vezes tão opostas, que se diria conduzirem no sentido contrário à ?voluntas ordinata? plasmada nas ?leis? ou ?regras de vida? prescritas nos seus Códigos fundamentais, - a Bíblia e o Corão ? sempre que induzem a matar ou a morrer em nome de Deus, negando assim a bondade do próprio acto da Criação. Como exemplo dessas oposições, que a história regista, o Papa-académico impôs ao Papa-pastor de almas a citação de um texto medieval em que o Imperador bizantino Manuel II Paleólogo desafia um interlocutor persa, também versado na cultura greco-cristã, a mostrar o que Maomé trouxera de novo à problemática da fé e da razão, para além de ?coisas demoníacas e desumanas, tal como o mandamento de defender pela espada a fé que pregava?. Como não constou do discurso do Papa-académico se o interlocutor do imperador bizantino contrapôs à evocação da ?jihad? islâmica as ?guerras santas? que também foram as Cruzadas e a Inquisição, igualmente ?contrárias à natureza de Deus, que não ama o sangue?, logo a ?aldeia global? associou a terceira dimensão do cidadão do mundo Joseph Ratzinger: o Papa-político, chefe de uma Igreja organizada como Estado promotor e defensor de uma ?ideologia?, como na Sociologia se chama ao ?conjunto de ideias e representações que grupos sociais criam acerca do seu meio e de si mesmos para explicar o mundo que os rodeia e o papel que nele representam.? Filho de uma determinada cultura, ? germânica e eurocêntrica ? o universitário Ratzinger não poderia ficar imune ao desenvolvimento da dialéctica que, depois dos seus compatriotas Kant, Fichte e Schelling, levaria um quarto compatriota, Hegel, a afirmar que o ser só se determina por uma oposição e uma luta contra o oposto. E no aspecto em que esta dialéctica se manifesta e ressalta no comportamento ?político? dos povos, na sua obra ?Princípios da Filosofia do Direito? há luzes que iluminariam mais o discurso do Papa se não o obrigassem a referenciar uma autoria equivoca... Diz Hegel, no item 352, que ?a verdade e o destino das ideias concretas, dos espíritos dos povos, residem na ideia concreta que é a universalidade absoluta. Esse é o Espírito do mundo. Em volta do seu trono, os povos são os agentes da sua realização, testemunhas e ornamentos do seu esplendor. Como espírito, é ele o movimento da actividade em que a si mesmo se conhece absolutamente, se liberta da natureza imediata, se reintegra em si mesmo (...)? Em abono da ?universalidade absoluta? e do ?Espírito do mundo?, o Papa-académico não hesitaria provavelmente em citar o filósofo. Mas talvez guardasse para si (pro domo sua) o passo seguinte em que Hegel afirma que a resposta aos três grandes Impérios em que o espírito se ?fechou em si mesmo no extremo da sua negatividade absoluta? ? o Império do Oriente, o Império Grego e o Império Romano ? foi dada pelo Império Germânico (o Sacro Império Romano-Germânico, diga-se), ao qual caberia ?a missão de concretizar o princípio da unidade da natureza divina e humana?, assim promovendo ?a reconciliação como verdade e liberdade.? Já não sensibilizaria minimamente o Papa o desenvolvimento da dialéctica hegeliana seguido por outros seus compatriotas ?materialistas?, como Feuerbach e Marx, para os quais o ser divino é uma projecção fora do homem, uma ?alienação?... Marx é peremptório: ?Não é a consciência dos homens que determina a sua existência, mas, pelo contrário, é a existência social que determina a consciência.? O ?ruído? estrondoso que o discurso de Bento XVI provocou na ?aldeia global? e no mundo islâmico em particular - apenas por conter uma citação que não é falsa, podendo ser ?politicamente incorrecta? na boca de um Papa que também é ?político? quando omite a violência que caracterizou a sua Igreja durante séculos (em Portugal a Inquisição só terminou no começo do século XIX) ? haveria de fazer sorrir Karl Marx, por ver justificada ainda hoje uma reflexão sua, produzida no século XIX, sobre qual seria a ?tarefa da história? (e concomitantemente da Universidade), face a uma realidade em que ?... a crítica do céu transforma-se em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito e a crítica da teologia em crítica da política.? Se fosse vivo, o filósofo do ?materialismo histórico?, que também discursou em Universidades alemãs, haveria de dedicar aquela sua asserção aos fiéis de todas as religiões, mas, especialmente, aos teorizadores do ?fim da História? e da ?morte das Ideologias?...
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