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Desata-me

...a acta está para o adulto como a redação está para a criança e, por isso, ambos fogem delas como o diabo da cruz

Sinto-me oca diante dessa página em branco que sou obrigada a preencher para não repetir o que sempre ocorre quando as atas ficam a meu encargo, ou seja não atam.      Como o pensamento voa, a tortura de ter que escrever me faz lembrar a ojeriza à escrita na escola. Ter que escrever, há algo pior do que isso? Então, o pensamento voa também para Clarice Lispector que diz que o que salva é escrever distraidamente, esperando que a isca pesque a palavra. Estou aqui de anzol na mão... Enquanto isso devaneio. Vou me lembrando do horror das crianças às redações escolares quando são obrigadas, por exemplo, a congelar no papel ?Minhas Férias?. Sua imaginação lépida e fagueira contrasta com a imobilidade do lápis imune ao filme que traz com a rapidez de uma flecha os dias passados longe das obrigações escolares. Não raro o sinal toca e o papel fica lá, branco como neve, totalmente alheio à fertilidade da imaginação.
Jesus Martin-Barbero explica o mal-estar das crianças diante da folha em branco. No momento atual, em que as inovações tecnológicas deslocam a cultura ocidental de seu eixo letrado, não há como exigir dos alunos que se adaptem ao modelo de ensino pautado na linearidade e na seqüencialidade implicadas no movimento da esquerda para a direita e de cima para baixo. A empatia que crianças, adolescentes e jovens demonstram para com os meios audiovisuais, os videogames e o computador é fruto desse descentramento cultural e esse é um dos motivos que podem explicar sua apatia diante do papel. Mas será que somente as novas gerações são afetadas por esse descentramento? E essa minha dificuldade de atar, não seria ela fruto da minha aproximação interessada às novas competências culturais de crianças e jovens? Redações e atas têm muito em comum: o prazer do pescador não tem correspondência com o nervosismo de quem tem que dar conta de atar toda a movimentação de um período de férias ou de uma reunião de pesquisa. É por isso que a ata está para o adulto assim como a redação está para a criança e, por isso, ambos fogem delas como o diabo da cruz.
Como já estou aqui há algum tempo, e a isca não quer pescar a palavra, e por isso a ata não sai, aproveito para fazer uma oração: Que Jesus, o verdadeiro, livre as crianças, ao menos elas, do inferno de atar, que elas possam romper com a chatice da seqüencialidade e da linearidade do saber escolar, cobrindo-se ao bel-prazer com a neve do papel em branco, como queria W. Benjamin, e que lhes seja conferido, por direito e merecimento, o dom de atear - de avivar o fogo, a chama. E, se não for demais, que a mim também seja concedida essa graça. Amém.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 161
Ano 15, Novembro 2006

Autoria:

Maria Luiza Oswald
Prof. da Faculdade de Educação da UERJ; coordenadora do Projeto ?Infância, Juventude e Indústria Cultural-sociedade, cultura e mediações: imagem e produção de sentidos
Maria Luiza Oswald
Prof. da Faculdade de Educação da UERJ; coordenadora do Projeto ?Infância, Juventude e Indústria Cultural-sociedade, cultura e mediações: imagem e produção de sentidos

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