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"As pessoas são avaliadas pela forma como se movimentam na língua e isso pode ser penalizador para elas"

Maria de Lourdes Dionísio, investigadora na área das Literacias, na Universidade do Minho, em entrevista à PÁGINA

Foi com agrado e surpresa que ao cruzar-se com os seus alunos ouviu dizer: ?É a professora de Literacias!? Maria de Lourdes Dionísio, é docente, trabalha e investiga na Universidade do Minho, em Braga. A sua área é a das Literacias. Um plural que, segundo a investigadora, ainda não é adoptado em termos de politicas educativas, mais inclinadas a dar importância aos aspectos mensuráveis da literacia. Caso dos estudos do PISA [Programme for International Student Assessment].
Como presidente da Associação Portuguesa para a Literacia [Littera], a investigadora é também representante de Portugal no Comité Europeu da International Reading Association, que reúne mais de 30 associações de literacia da Europa. É directora da Revista Portuguesa de Educação, do Instituto de Educação e Psicologia, da Universidade do Minho, há três anos, e colaboradora na rubrica  ?POLAROIDs.txt.Palavras Situadas?, de a PÁGINA da Educação.
Maria de Lourdes Dionísio iniciou a sua carreira em metodologia de ensino do Português, reconhecida actualmente como didáctica. A leitura na sala de aula e nos manuais escolares constituiu a sua área de trabalho inicial. Dentro desta temática desenvolveu a sua tese de doutoramento, uma análise de manuais escolares publicada em livro sob o título: ?A Construção Escolar de Comunidades de Leitores ? Leituras do Manual de Português?, pela editora Almedina. Leccionou nos cursos de ensino, mas esteve sobretudo ligada à formação de professores. Colabora ainda com a Unidade de Educação de Adultos, na universidade onde trabalha, tendo participado num projecto de literacia desenvolvido numa fábrica.

O ensino do Português, tal como o da Matemática, é dos mais visados em termos críticos pela sociedade em geral. Que razões encontra para isso?

É ainda mais visado o Português, talvez por ser do domínio público qualquer pessoa dá uma opinião, o mesmo não acontece em relação à Matemática. O fenómeno é engraçado e está estudado. O foco no Português acontece porque a disciplina é vista, naturalmente, como o lugar da leitura, da escrita e da fala, mas as Ciências também o são. Acontece também por se pensar que cabe à disciplina de Português resolver as práticas de literacia do cidadão, mas esse papel não lhe é exclusivo, nem é exclusivo da escola. 

Recentemente estreou na RTP 1 um programa sobre o uso do português, intitulado ?Cuidado com a Língua?, no seguimento do que estava a dizer, o que pensa deste tipo de iniciativas?

É um olhar muito redutor sobre o uso da língua. Mas não queria entrar muito por esse campo.

As críticas ao domínio do português ou da língua portuguesa são muito dirigidas a aspectos que se prendem com as questões ortográficas. Fala-se pouco sobre o domínio da oralidade ou da compreensão. Todos estes aspectos têm o mesmo valor?

Quando a pessoa comunica, diz quem é, e se não tem fluência na exposição da sua opinião é penalizada com a afirmação de que não sabe falar. Todos estes aspectos são importantes na medida em que as pessoas são avaliadas pela forma como se movimentam na língua e isso pode ser penalizador para elas. Nesse sentido, será sempre preciso criar condições, escolares e não escolares, para que as pessoas possam não ser penalizadas por esse recurso que é fundamental no seu quotidiano. O objectivo da Educação é esse. Educação em geral, e não só na disciplina de Português. Neste ponto, partilho uma perspectiva que retira à disciplina de Português e à escola, a possibilidade exclusiva de transformar as pessoas em sujeitos letrados. Há muitos outros condicionantes que participam nessa construção. Uma pessoa pode aprender uma regra na televisão, mas ainda assim, não a conseguir aplicar numa situação comunicativa real, por haver factores muito mais fortes que a condicionam: o seu capital cultural, a comunidade em que está inserida...

Há apostas específicas a fazer ao nível da escrita, leitura, oralidade e compreensão, tendo em conta, por exemplo, o grau de ensino ou a actividade profissional?

Esses aspectos não são sequenciais, por isso, falamos em educar ao longo da vida e não em actualizar as pessoas. A escrita, a leitura e a fala, são processos que se vão desenvolvendo conforme as práticas sociais em que as pessoas se envolvem. A escrita no computador é hoje uma realidade, que pessoalmente, poderia não dominar há 15 anos atrás. O mesmo se pode aplicar à compreensão de textos online, uma vez que implicam uma mudança na posição como se faz a leitura. Um livro lê-se na horizontal, um texto num ecrã lê-se na vertical. Por tudo isto, não posso defender uma aposta mais na escrita ou na oralidade. Estes aspectos têm de ser vistos de forma integrada. 
As situações comunicacionais variam e são cada vez mais sofisticadas. Por isso, o sujeito vai ter necessidade de estar sempre a aprender a ler, a falar e a escrever, porque é constantemente confrontado com processos e fenómenos sociais novos.

O Messenger e a escrita economizada

Fenómenos como os sms ou os programas de ?conversa? online em tempo real, como o MSN Messenger, onde se utiliza uma escrita economizada, às vezes abreviada ou adulterada...

É uma codificação própria do meio de comunicação. Seria até um pouco estranho que uma pessoa ao pretender mandar uma mensagem, no menor espaço disponível e em tempo limitado, se pusesse a escrever de uma forma que não fosse simplificada. Essa forma de escrita é adequada ao meio. Outra forma já não será. Uma vez recebi um email de uma aluna que tinha no canto superior direito a inscrição formal da data e todo o formato de uma carta que seria enviada em papel. Ora a data é algo que consta automaticamente num email, inclusive até a hora de envio. Portanto, foi uma mensagem paradoxal, o meio não era compatível com aquele tipo de escrita, e no entanto ela não estava incorrecta.
Eu própria sou utilizadora do MSN Messenger. E, por vezes, converso com pessoas que usam esse programa de uma forma pouco simplificada, com parágrafos muito extensos. Ora durante uma conversação que está a ser escrita é necessário usar frases curtas e rápidas, caso contrario toda a comunicação se baralha.

Como vê o uso da Internet e desses meios de que falamos: adversários ou aliados  da língua portuguesa?

Costumo desenvolver a ideia do leitor cosmopolita. Uma pessoa que se envolve em várias práticas culturais tem condições para ser sujeito fluente no uso da língua em múltiplas dimensões. O Messenger é apenas mais uma prática cultural. Provavelmente, as pessoas que são avaliadas como deficientes no uso da língua, também não usam a Internet ou o Messenger. Ao nível da formação dos jovens, uma das funções da escola é envolvê-los nessas múltiplas práticas e trabalhar no sentido de os tornar conscientes de quais as características de cada uma delas. Por isso, não vejo estes meios como adversários, mas sim como manifestações da língua.
Um dos maiores problemas que pressinto em relação à expressão, escrita ou oral, não tem a ver apenas com a ortografia, mas com a dificuldade em dominar um discurso que seja reconhecido pelo outro e em escrever textos que sejam próprios e específicos de um determinado grupo. Sem que isso implique que o texto tenha erros de ortografia ou sintaxe.
Quando o senso comum olha para a língua ainda se posiciona ao nível da palavra e da frase. Mas a linguística já mostrou que em situações comunicativas estamos muito além da frase e do enunciado.

Literacias

Que leitura faz das avaliações dos níveis de literacia mencionadas por estudos internacionais como o PISA [Programme for International Student Assessment], da OCDE?

O PISA mede o nível de compreensão, perspectivando a literacia como um conjunto de competências de compreensão de textos escritos. Apesar desta perspectiva mensurável ser a adoptada em termos de políticas educativas, a investigação vê a literacia, ou antes, as literacias como práticas culturais que não são mensuráveis. Mas, ainda que partilhe desta perspectiva de literacias, não posso ficar alheia ao resultados do PISA, sobretudo pelo que isso implica de estigma para os nossos jovens.

Literacias?

O plural significa que existem literacias familiares, laborais, escolares, juvenis... Em suma, práticas sócio-culturais mediadas pelo escrito sem ter exclusivamente que ser através da palavra escrita, ou seja, podendo ter outros modos de expressão. Este olhar plural de literacia, em que a medição é impossível, visa perceber quais são as práticas em que os sujeitos se envolvem nos seus diferentes grupos de participação. Deste modo, ser letrado significa ser fluente nesses grupos.
A questão da escola e da certificação, constitui uma preocupação para estas perspectivas, porque a aferição pela literacia dominante é a chave que vai permitir ao sujeito ser reconhecido na sociedade.

Qual o núcleo essencial de aprendizagens do português para o cidadão comum?

Usar a língua nas suas mais diversas manifestações. Daí a necessidade de criação das condições escolares para que cada aluno perceba essa pluralidade. Hoje em dia, no reconhecimento que os grupos sociais chegam à escola sem terem adquirido nos seus contextos de socialização primária (família) práticas que facilitem a literacia escolar, a possibilidade de dar a todos o domínio da língua não pode acontecer só pelo uso. A perspectiva que perfilho coloca a tónica na necessidade da instrução explicita dos discursos. Algo que é fundamental para que o sujeito possa, mais rapidamente, compreender a razão de ser das diversas manifestações do uso da língua, e as suas diferenças sempre em conformidade com os contextos.

A entrevista vai ser lida por muitos professores de Português. Alguma recomendação especial para o inicio deste ano lectivo?

Que tenham uma consciência muito profunda do que são os alunos enquanto falantes e os seus mundos culturais, para poderem organizar as suas práticas pedagógicas no sentido de lhes propiciar o patamar acima.

Português, Literatura Portuguesa, Clássicos da Literatura

A propósito da reconfiguração da disciplina de Português no ensino secundário, os conteúdos devem ser iguais em todos os cursos?

Sim, porque a reconfiguração da disciplina de Português [em substituição da disciplina de Português B e de Língua Portuguesa comum a todos os cursos Cientifico-Humanísticos e Tecnológicos] reveste-se sobretudo de conteúdos linguísticos. O Português A e o Português B, que existiam antes da última reforma, apesar da designação, eram disciplinas de literatura portuguesa, sendo que aquilo que as distinguia era a quantidade de autores e obras estudados.
Por outro lado, a criação de uma disciplina de Literatura Portuguesa [e de Literaturas de Língua Portuguesa] para os jovens que seguem o curso de Línguas e Literaturas faz sentido porque lhes permite entrar num grau de especialização maior.
Mas, não vejo que o português, como língua, possa ser diferente para os diversos cursos. A acontecer isso seria funcionalizar de mais a língua. Mesmo ao nível do programa, que tem sido muito contestado por ser difícil, essas manifestações plurais do uso da língua estão previstas. Além de que esta disciplina tem também o seu lado de literatura, dizem que é pouco, mas permite a qualquer jovem um conhecimento base. Pensar que é possível aprender o ?Português Para...?, além de uma limitação, seria uma ingenuidade porque a língua desenvolve-se nos contextos do seu uso.

Qual a importância para a aprendizagem do português do estudo dos clássicos da literatura?

A função da literatura na escola sempre esteve muito além do exemplo linguístico, ela tem uma função de preservação da cultura nacional. Os clássicos cumprem essa função. Seria também muito difícil pensar que era possível um programa de literatura que não tivesse um corpo estável para todos. Recentemente foi criada uma disciplina que se chama Clássicos da Literatura, que as escolas podem oferecer no seu projecto educativo. Vejo-a com agrado porque, numa perspectiva menos limitadora, extravasa os clássicos de língua portuguesa e dá a conhecer os universais.

Entrevista conduzida por Andreia Lobo


  
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Edição:

N.º 160
Ano 15, Outubro 2006

Autoria:

Maria de Lourdes Dionísio
Universidade do Minho
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Maria de Lourdes Dionísio
Universidade do Minho
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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