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Um olhar critico e alguns tópicos para reflexão

 «Estatuto» versus «regime legal» das carreiras (do Ensino Básico e Secundário)

Embora eu também seja professor, tal como a Ministra da Educação e os seus  Secretários de Estado, não sou docente deste sector, mas tenho estado, há mais de vinte anos, ligado à formação destes, e em  particular ao seu acompanhamento e avaliação, pela parte da Universidade, no 5º anos das licenciaturas em ensino (o ?estágio pedagógico?). Com isto pretendo significar que nem me considero alheio a este tema, nem ?especialista? ? pois este documento nem sequer rege a minha própria carreira. Contudo, sei  por experiência, o que poderá ser, mas sobretudo o que não é uma avaliação de desempenho, e disponho ainda da experiência que o meu sector tem na ?avaliação de pares?, adquirida em mais de cinquenta júris e concursos de todos os escalões da carreira. E com a liberdade total que me confere o facto de não ter quaisquer funções institucionais ligadas a este sector, nem por via académica nem sindical, proponho-me apenas apresentar críticas e sugestões para a discussão/negociação que se avizinha... sem qualquer pretensão de produzir um articulado alternativo... naquela crença, que mantenho, de que ?da discussão nasce a luz?!
Começarei por duas críticas de fundo e uma observação à proposta do ME:
- Não surge em nenhum lado, associada à noção de avaliação e de promoção, a componente de valorização profissional/formação contínua dos docentes... que deveria ser o núcleo em que se basearia a melhoria da qualidade na educação, através da maior qualificação profissional e acompanhamento ao longo da carreira dos professores, e esta é uma falha grave. Não sei se foi por isso que a proposta se chama ?regime legal? em vez de ?estatutos?... no que me surge como uma desvalorização óbvia da noção de carreira...
- A limitação administrativa do acesso à categoria mais elevada da carreira (vulgo ?quotas?) é a antítese do ?discurso do mérito?... que aparentemente se pretenderia introduzir: não há nada de mais desincentivador  do esforço de melhoria e exigência do que a percepção de que tudo poderá ser invalidado pelo facto da ?quota anual? já estar totalmente preenchida... para não dizer que poderá ser preenchida por métodos e critérios que nada tenham a ver com exigências de qualidade ou mérito! Este método é ainda mais absurdo e injusto do que as velhas ?vagas? para cada categoria... E claro que nenhum dos referidos governantes do ME gostaria de ter sido confrontado, quando apresentou a respectiva tese de mestrado e/ou doutoramento, com o prévio ?esgotamento? das quotas para aprovação nestas provas, independentemente da qualidade intrínseca do trabalho produzido! Um sistema de quotas como o proposto ? e o mesmo se aplica ao que foi introduzido pelo governo anterior na administração pública e está em vigor actualmente! ? favorece sobretudo comportamentos corporativos, subservientes e de compadrio... ou seja, opostos ao tal mérito e qualidade que se pretenderiam promover!
- A observação refere-se a um ponto não clarificado na proposta, no que se refere à existência (ou não) de uma carreira única para os docentes deste sector, indo do pré-escolar ao secundário: não confundindo ?carreira única? com ?carreira horizontal?, nem com ?duração uniforme das formações?, e não defendendo o ?status quo? do actual ECD, penso que representou um avanço face a situações anteriores (regentes escolares... magistério primário, etc.) a configuração da docência neste sector como de uma única carreira, ao nível das exigências académicas, das obrigações e dos vencimentos, e que será positivo manter a mesma dignidade académica para as exigências profissionais desde a educação pré-escolar à secundária... embora as formas concretas de obter as qualificações possam ser diferentes (e mesmo as durações, como aliás é a situação actual!)... e todo o esquema de formação do professores, com a introdução do processo de Bolonha, esteja em revisão... mas o princípio deve manter-se.
Tendo em conta o que disse atrás, devo dizer que concordo com três preocupações da proposta do ME (mas não com a sua concretização):

- AVALIAÇÃO: é um princípio basilar da democracia a noção de prestação de contas... e parece-me normal que tal suceda regularmente por quem é pago por verbas públicas... só que nem todos as formas são aceitáveis... A proposta só propõe um sistema incrivelmente rígido e burocrático (basta contar as ?fichas? que deverão ser produzidas para a avaliação de um único docente!)... e baseado numa observação do número ridículo de 3 aulas (ainda por cima previamente anunciadas, favorecendo a preparação prévia de aulas ?teatrais? de belo efeito!)... e feitas por colegas sem qualquer hierarquia de competências ou graduação especial... e, no ano seguinte, as situações de avaliado/avaliador podem ter-se invertido... o que, obviamente, não favorece a independência e transparência das avaliações! Neste aspecto, proporia que houvesse  avaliações em períodos flexíveis (entre dois e quatro anos, por escolha do avaliado), a partir de portfolios que o próprio iria acumulando ao longo da sua actividade nesse período... com avaliações que confeririam progressão entre os seis e sete anos... A flexibilidade dos períodos permitiria acomodar com facilidade a generalidade dos casos de maternidade/paternidade e de doenças prolongadas sem penalizar esses docentes. Penso igualmente que as avaliações ? pelo menos as que implicam  progressão ? deverão incluir avaliação de desempenho, e que esta tem de incluir, entre outros aspectos, observação de aulas... mas que esta observação tem de decorrer num período determinado razoável (algo entre um e três meses... com observação in situ  ou filmagem em momentos não anunciados previamente, num total nunca inferior a 6-8 aulas por docente, distribuídas pelos níveis de ensino e turmas que leccione...) Para ser validável e isenta, esta avaliação não poderá ser confinada exclusivamente à própria escola, terá de envolver pessoas exteriores... Penso ainda que o esquema de classificação se poderia simplificar:  um nível de classificação NEGATIVA, outro de POSITIVA, e um, mais exigente (em moldes a definir) MUITO BOM... Eventualmente admitiria um nível EXCELENTE, avaliável por solicitação do professor, em júri nacional, para desempenho/contribuição particularmente relevante neste sector (para os ?Rómulos de Carvalho? que, felizmente, sempre vão existindo!)... Em qualquer caso, é um princípio democrático o da transparência e justificação da avaliação... e o artigo 50º, aí, tem um ?cheiro com mais de 32 anos?, e é totalmente inaceitável!

- CATEGORIAS FUNCIONAIS: uma categoria funcional deve ser tomada como uma aptidão publicamente reconhecida para o exercício de certas funções, e assim, parece-me impensável que a actividade de um professor, ao longo de mais de trinta anos de actividade, nunca tenha qualquer diferenciação na responsabilização, coordenação ou avaliação, ou mesmo alguns aspectos da gestão, independentemente da sua experiência adquirida, especialização e/ou formação complementar, avaliação de desempenho... mas tão somente varie o seu vencimento. Isto significa também que a profissão de professor deverá ter duas categorias com nome próprio (das quais uma poderá ser ?titular?... e a outra uma designação a definir, tipo ?agregado?, ?extraordinário? ou outra...), e hierarquização de algumas funções e competências (Presidência dos Conselhos Pedagógico ou Executivo, ou da Assembleia de Escola, coordenação de Departamentos, orientação de ?estágios?, avaliação de manuais escolares, participação em júris de avaliação exteriores à escola/agrupamento, etc.)... e que essa diferenciação possível de funções se deve reflectir nas exigências da prova pública de candidatura à categoria superior... (para acesso à qual 18 anos me parece um exagero, proporia algo como 8-10 anos após o período ?probatório? (a que preferiria chamar de ?introdutório?!)... com algumas possibilidades de pequenas acelerações da carreira... [Creio que, no ensino superior, vivemos bem com as diferentes categorias... e que o fundamental dos problemas nos surge das limitações das vagas em cada categoria... ou da menor isenção ou transparência dos processos de transição entre elas... e, portanto, sobre esses aspectos é que se deveria corrigir neste sector.]

- EXAME DE ACESSO: a minha divergência aqui refere-se sobretudo à forma desarticulada como surgem os três momentos ?introdutórios? para o futuro professor: a formação prática (?estágio?), conferida actualmente aos alunos-estagiários (que não são ainda professores) no último ano da sua formação académica, envolvendo uma escola e a sua instituição de formação; a aferição (?exame?), que se destina a permitir a comparabilidade das várias instituições de formação (incluindo as privadas), ?normalizando? (no sentido matemático do termo) as classificações, e reorientando alguns pré-candidatos claramente desadequados para esta profissão... ou propondo formações correctoras para as insuficiências de formação de outros; o ?ano probatório? (que sugeriria fosse prolongado para dois anos de ?acompanhamento?, por professores da categoria mais elevada, a estes ?professores-estagiários?. O conjunto das actividades destes cerca de três anos (um ainda como alunos, e dois já como professores, embora acompanhados na sua actividade), juntamente com a tal prova (ou provas) de aferição, deveria ser encarada no seu conjunto, de modo a não haver sistemática repetição de tarefas e avaliações, mas um plano integrado de formação/aferição/avaliação para este período... Este exame perderia assim o carácter de ?funil de regulação? do número de professores a acederem aos concursos de colocação (pois essa regulação deve o Estado fazê-la, perante estudos prospectivos das necessidades previsíveis, através do financiamento das formações).

- 60 ANOS: não creio  que seja legal discriminar para as licenças sabáticas (e não serão introduzidas depois outras limitações?) os ?velhos? desta idade... o que é tão mais ridículo quando coincide com o aumento da idade para a aposentação... e da esperança de vida! Poder-se-á alargar esta limitação ?política? a outros campos... incluindo a política

- LIMITAÇÃO DE MANDATOS: dever-se-ia introduzir nos cargos electivos nas escolas/agrupamentos, tal como está (?) previsto para os cargos autárquicos e políticos... a perpetuação de funções e poder nunca á boa!

Finalmente, e como mensagem global, penso que a via de ataque aos professores, desvalorização das suas funções e da sua dignidade social, conduz aos resultados muito negativos que já se verificam noutros países europeus (com relevo para a Inglaterra e para a Holanda, que só conseguem assegurar a renovação de 50 por cento do corpo de professores do ensino secundário para a próxima geração... e têm de ?importar? professores de outros países, incluindo Portugal!)... e é tão mais gravosa para um país com o baixo nível de qualificação científica, académica e cultural como o nosso! E ? ao contrário do que foi dito publicamente ? a generalidade dos professores está seriamente interessada e envolvida no sucesso educativo e académico dos seus alunos... até porque a maioria continuará ainda nesta profissão por mais uma ou duas dezenas de anos... ao contrário dos governantes e ministros... E, bons ou maus... mas sempre ?melhoráveis? (assim lhes dêem oportunidades!), é com a generalidade destes professores que se fará a EDUCAÇÃO em Portugal para a próxima geração... pelo que devem ser acarinhados, em troca da exigência cada vez mais elevada que a sua profissão cada vez mais implica. Uma ?paixão? séria pela Educação até viria a calhar...


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 160
Ano 15, Outubro 2006

Autoria:

Manuel Pereira dos Santos
Professor Catedrático da Univ. de Évora
Manuel Pereira dos Santos
Professor Catedrático da Univ. de Évora

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