Página  >  Edições  >  N.º 160  >  Eurásia, Junho ? Setembro 2006

Eurásia, Junho ? Setembro 2006

Caderno Oriental - [I]

A partir deste e ao longo de outras edições de a PÀGINA Bernardo Amaral deixar-nos-á aqui, ao jeito de notas de campo, registos da viagem que está a fazer ao Oriente. Com tais notas não se pretende fazer mais do que deixar aqui alguns retratos instantâneos tirados ao longo do percurso.

?Par les soirs bleus d'été, j'irai dans les sentiers, Picoté par les blés, fouler l'herbe menue,/Rêveur, j'en sentirai la fraîcheur à mes pieds./Je laisserai le vent baigner ma tête nue. Je ne parlerai pas, je ne penserai rien:/Mais l'amour infini me montera dans l'âme,/Et j'irai loin, bien loin, comme un bohémien,/Par la nature, heureux comme avec une femme.?

Arthur Rimbaud, 1870,
citado por Corto Maltese no final de ?Na Sibéria?

Deixando o Porto rumo a Macau, atravesso por terra a Rússia, a Mongólia e a China, tendo como companheiros de viagem Marco Polo, Miguel Strogoff e Corto Maltese.
Pergunto-me se nesta aldeia global ainda sobrevive o estranho, o longínquo e o desconhecido?

Berlim, 9-14 de Junho 2006

You are leaving the American sector*
* Letreiro em Checkpoint Charlie, um dos principais pontos de passagem entre Berlim Ocidental e Berlim Leste, aquando da existência do muro.
O primeiro ponto de paragem e a porta de entrada no desbotado continente vermelho.
Berlim permanece uma cidade de grandes contrastes: pólo de movimentos que aspiram construir uma sociedade mais humana, alternativa ao capitalismo, a globalização e ao neoliberalismo. Berlim é simultaneamente objecto de uma afincada operação de cosmética e merchandising por agentes exteriores ao cidadãos. Destrói- se a História e constroem-se não-lugares: espaços sem sabor nem identidade, como se sente ao vaguearmos pelos desertos humanos de Potsdammer Platz ou Friedrichstrasse.
O poder vai arquitectando uma Berlim, capital europeia com identidade corporativa, enquanto que os berlinenses a cidade que sempre lhes pertenceu...
Deste contraste surge a luta entre uma cidade real e uma cidade fictícia.
Caiu um muro para se impor outro....

Moscovo, 14-18 Junho 2006

Olhar perdido/ Odor a vodka
Os ventos do capitalismo/ penetram bravos no/ ventre da grande Mãe
Sorrisos vassalos e lascivos/ Odor a dólares
Na capital da grande nação russa vivem-se todos os sintomas  de uma grande metrópole confusa e abalada. Impressionam-me as grandes avenidas ladeadas por imponentes edifícios estalinistas, assim como as belíssimas estações de metro, verdadeiros salões de baile com gente exótica de passos apressados.
Percebemos que estamos no centro do maior país do mundo, que se estende da Europa ao Oceano Pacífico e também a  escala da sua cultura, elemento de ligação entre tantos povos, etnias e crenças diferentes.
Em Moscovo, ninguém fala ou quer falar Inglês e ao contrário do que se passa em Berlim, não se apagam os vestígios da História recente. Murais soviéticos ou estátuas de Lenine proliferam não só pela cidade como por todo o país.
Mas como qualquer destino turístico, e capital de uma nova economia neoliberal, Moscovo é também uma cidade que mumifica e comercializa o seu passado, transformando-o num objecto de consumo, num souvenir. A algumas centenas de metros do mausoléu de Lenine, onde este se estende religiosamente mumificado, passeiam-se as reincarnações de Marx, Lenine ou Stalin, que por alguns rublos posam com os turistas para mais tarde recordar...
A  Mãe Rússia vive perturbada e confusa.
Os seus filhos perguntam-se onde estão.. para onde vão..
Uns tomam as rédeas do capital e/ cavalgam desesperadamente pelas estepes.
Outros deixam-se mergulhar ébrios/ procurando avistar um sentido no infinito...

Transiberiano, Moscovo-Irkutsk, 22 ? 27 Junho 2006

O Transiberiano. A ponte entre o Ocidente e Oriente treme e vacila...
Entrando no Transiberiano, embarcamos na cosmogonia do Mundo Russo. Neste lugar em movimento, em que o corredor do vagão é a nossa rua e a cabine o nosso refúgio, bebe-se vodka, conversa-se em russo, lêem-me a sina... Ao longo de 4 noites e 5 dias seguem-se os olhares, encontros e desencontros com personagens também em movimento.
À medida que nos entranhamos neste vasto país, vou observando o cenário das grandes metrópoles a diluir-se e esboroar-se em milhares e milhares de quilómetros de uma paisagem imponente e magnífica. Sinto que começo agora a perceber a essência deste país e do seu povo. A força da Natureza vai aumentando e nem dou conta que passo os Urais, a imposta fronteira entre a Europa e a Ásia.
Já na Sibéria, o mundo ocidental parece-me demasiado denso e  babélico.

Irkutsk e Khuzir, 27 Junho ? 7 Agosto 2006

Sibéria. Oriente longínquo e deportado/
Porto de exilados. Universo xamanista
Irkutsk é apelidada ?Paris da Sibéria? pelos seus edifícios neoclássicos construídos no início do século. Outrora palco de uma elite europeizada, onde antigos revolucionários foram exilados, em Irkutsk vive-se hoje um ambiente provinciano de cidade do interior.  As suas casas em madeira e as ruas poeirentas lembram-me os cenários dos westerns americanos.
Perdido e confuso no ?Farleste? siberiano, prefiro o exílio nas margens do Baical, um dos maiores lagos de água doce do mundo e o mais profundo de todos. O Baical é o pequeno mar da Sibéria onde habita o ?omul?, um delicioso peixe que se come fumado, e que é o sustento principal das povoações desta região.
A caminho de Khuzir, na ilha de Olkhon, as árvores e montanhas vestem-se de trapos e oferendas, sacralizando assim a paisagem deste novo universo Buriate*.
São sinais do xamanismo que marca a passagem esbatida da Rússia para a Mongólia.
* Os Buriates são uma etnia de origem Mongol que povoam as regiões limítrofes a norte da China e Mongólia, formando a República Autónoma de Buriatia. Muitos dos Buriates conservam hoje crenças animistas e xamanistas, enquanto que outros tantos se converteram ao budismo tibetano.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 160
Ano 15, Outubro 2006

Autoria:

Bernardo Amaral

Bernardo Amaral

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo