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Um novo personagem nas salas de aula ? «O hiperativo»

Nos últimos anos, um novo personagem desponta no cenário das escolas brasileiras − ?o hiperativo?. Como suponho que esta não seja uma ?invenção nacional?, escrevo aqui para compartilhar este fenômeno com professoras e professores portugueses. Quem é ?o hiperativo?? Numa resposta muito simplificada, seria uma identidade instituída por narrativas que falam de ?crianças agitadas e dispersivas?. Os investimentos no escrutínio e descrição de tal identidade têm sido intensos e diversificados, numa movimentação cujo objetivo inequívoco é ?administrar? a conduta do ?hiperativo? no conjunto das atividades de gestão da escola. Inclui-se aí a gestão administrativa, pedagógica, curricular e disciplinar. A criança ou o jovem ?hiperativo? têm sido vistos como ruptores da ordem e, como tal, desestabilizadores da lógica pedagógica da maquinaria escolar, acentuadamente marcada pela racionalidade moderna, em que o amplo e minucioso domínio do uso do espaço e do tempo é central.
Se seguirmos uma linha foucaultiana de análise e considerarmos as sociedades neoliberais contemporâneas como orientadas para ações de governamento (de si e dos outros), é mais ou menos fácil visualizarmos as estratégias identitárias como práticas governamentais. Tais práticas não são privativas do Estado, elas são variadas, polimorfas e disseminam-se pelo tecido social, o que as aproxima e unifica é seu direcionamento, sua finalidade − o controle das condutas.
Muitos autores têm mostrado que a produção de saberes, de conhecimentos sobre os seres e coisas do mundo são centrais às estratégias de governamento, pois não é possível governar o que não se conhece. É nesse sentido que saber é poder; poder que se exerce. Nesse sentido, também, as sociedades modernas têm sido pródigas na invenção de narrativas cujo objetivo é descrever como as coisas são e funcionam, entre elas, as identidades. Campos especializados de saber surgem, todos eles implicados na produção daquilo sobre o que falam. ?O hiperativo? é um bom exemplo da produtividade destas expertises contemporâneas, dentre as quais despontam as chamadas disciplinas da área psi, especializadas nas tecnologias das subjetividades. No assunto que nos interessa aqui, psiquiatras, psicólogos, pedagogos e terapeutas de todo o tipo têm se dedicado a descrever ?o hiperativo?, produzindo um poderoso arsenal discursivo. E não são apenas escritos científicos e acadêmicos que lidam com isso; peças publicitárias, matérias jornalísticas, programas de rádio, novelas de televisão, etc., integram o conjunto de instâncias por onde circulam versões destas narrativas identitárias. E já se pode encontrar no jornal de domingo um testezinho de algibeira para que cada pessoa avalie seu grau de ?desvio da normalidade?, e procure corrigir sua trajetória, regulando sua conduta para adequá-la à norma. Evidências da efetividade destas estratégias de governo das subjetividades podem ser colhidas o tempo todo, para isso basta ficarmos atentos. Ora é uma aluna que se descreve como ?ex-hiperativa?, ora uma professora que fala de seus esforços duplicados para acomodar e ensinar ?os hiperativos?. Eu lembro de meu sobrinho de sete anos que disse: ­− tia, não posso falar contigo agora, hoje é dia de psicóloga, sou hiperativo!
E nessa pequena fala aponto um dos problemas que vejo nestas estratégias de governo das subjetividades: a patologização. ?O hiperativo? é descrito como uma criança acometida de uma patologia denominada distúrbio de déficit de atenção, caracterizada por sintomas de desatenção, inquietude e impulsividade. Ela pode envolver alterações relacionadas à linguagem e memória, e embora o hiperativo tenha inteligência dita normal ou acima da média, o distúrbio se manifestaria na forma de dificuldades de aprendizagem e de disciplina. Como se vê, uma ?doença? que ataca principalmente a sociabilidade, restringindo a regulação e se interpondo ao processo civilizatório. Li em algum lugar que crianças ?hiperativas? estão sempre fazendo algo, e como sua energia, curiosidade e necessidade de explorar são surpreendentes e aparentemente infinitas, são propensas a se machucar e a quebrar e danificar coisas. Mais uma vez, observem que são crianças difíceis de governar e de controlar segundo os moldes e objetivos da moderna pedagogia. São crianças que nos escapam.
Seriam dificuldades das crianças que precisam de atenção e cuidados especiais ou nossas − professores e professoras despreparados para lidar com o movimento constante e a mudança de atenção permanente das crianças e jovens de hoje? Observo que a maioria dos estudantes apresenta sintomas do que é narrado como hiperatividade, e a maior parte deles parece muito bem resolvida; somos nós, adultos, que vemos problemas nesse novo modo de comportar-se. Será que estamos preocupados com o bem-estar das crianças ou com o insucesso da nossa pedagogia?
O que pretendi foi problematizar uma narrativa da qual uma das conseqüências é colocar um conjunto de crianças e jovens contemporâneos no terreno da anormalidade, criando mais um ?outro? na sala de aula. Mas a criação e a atenção a esse outro, ao contrário do que se pensa, pode ser vista como uma exclusão includente, quer dizer, descrever e patologizar os ?hiperativos? é uma forma de não deixá-los escapar, de aumentar o controle sobre eles. Contudo, há que se pensar na possibilidade de crianças e jovens ?hiperativos? serem a própria expressão da era em que vivemos; protagonistas ?normais? de um tempoespaço cada vez mais fluído, instável, matizado, rápido e desconcertante. Quem sabe a hiperatividade possa ser entendida como a ?normalidade? dos nossos tempos!?


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 160
Ano 15, Outubro 2006

Autoria:

Marisa Vorraber Costa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Luterana do Brasil
Marisa Vorraber Costa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade Luterana do Brasil

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