Página  >  Edições  >  N.º 159  >  Chveik e o capelão recebem uma visita inesperada

Chveik e o capelão recebem uma visita inesperada

À noite receberam a visita do outro capelão que estivera de manhã uma hora e dez minutos no campo de manobras para dizer a missa aos sapadores. Era um fanático que só pensava em aproximar de Deus todas as almas que lhe caíam nas mãos. Nos tempos em que era professor de religião inspirava aos alunos sentimentos de piedade, esbofeteando-os: o público tinha oportunidade de ler nos jornais algumas notícias com este título: "Um bruto" ou «Um professor de religião que prega às bofetadas».
Coxeava de uma perna, em consequência de uma discussão animada que tivera um dia com o pai de uma criança esbo­feteada por ele, porque o garoto duvidara da Santa Trindade. O professor dera-lhe três bofetadas: uma pelo Pai, a segunda pelo Filho e a terceira pelo Espírito Santo.
Este fogoso apóstolo viera nesse dia visitar o colega Katz com o objectivo de enternecer esta alma indócil e metê-la ao bom caminho. Começou assim: "Estou muito espantado por não ver em sua casa um crucifixo. Pergunto a mim mesmo onde é que o senhor poderá ler convenientemente o breviário. E nem uma única imagem de santos pelas paredes do quarto. O que é que está pendurado além, por cima da cama?» Katz sorriu e respondeu:
Susana no Banho, e a mulher nua que se vê em baixo é a minha antiga amante. À direita, distingue-se uma estampa japonesa representando os amores de uma gueixa e um velho samurai. Muito original, não é verdade? Quanto, ao breviário. leio-o na cozinha. Chveik, traga-o e abra-o na página três.
Chveik foi à cozinha e ouviu-se três vezes de seguida o ruído de uma garrafa a ser desarrolhada.
O devoto personagem ficou literalmente petrificado, quando viu que Chveik punha em cima da mesa três garrafas de vinho.
? É vinho de missa muito fraquinho, caro colega ? afir­mou o capelão Katz ?, ryzlink de qualidade superior. Tem o travo de um vinho de Moselle.
? Não beberei isso ? replicou o devoto. ? Vim para lhe falar da salvação da alma.
? Ficará com a garganta seca, caro colega ? disse Katz num tom insinuante. ? Dê-nos a honra de brindar connosco e eu ouvi-lo-ei sensatamente. Sou um homem tolerante, respeito todas as opiniões.
O homem molhou os lábios no copo, o que fez que os olhos lhe saltassem da cara.
? Vinho assombroso, não é verdade, caro colega? Você não acha que é um bom sangue? O fanático respondeu brutalmente:
? Estou a ver que o senhor pragueja.
? É do hábito ? ripostou Katz. ? Dou comigo muitas vezes até a blasfemar. Chveik, vaze vinho ao senhor capelão. Maquinalmente, o antigo professor de Religião levantou o copo e esvaziou-o. Teve vontade de dizer alguma coisa, mas não foi capaz. Contentou-se em reunir as suas ideias.
? Meu caro colega - prosseguiu Katz -, peço-lhe o favor de não ficar com esse ar sinistro de homem que deve ser enforcado dentro de cinco minutos. (...) A propósito de Inferno. Para mim, o Inferno é um sitio onde, em vez das caldeiras fora de moda, cheias de enxofre, se encontram enormes marmitas de Papin, caldeiras especiais com elevado número de atmosferas; os pecadores são assados em margarina e grelha­dos suavemente por meio da electricidade, são laminados durante milhares de anos, os dentistas se encarregam de lhes fazer ranger os dentes; os gemidos são registados no gramo­fone e enviam-se os discos para o Céu a fim de deleitar as almas dos bem-aventurados.
No Paraíso existem grandes va­porizadores de água-de-colónia, mas tocam ali tanto o Brahms que acaba uma pessoa por se desgostar da música e preferir o Inferno e o Purgatório.
? Chveik, vaze conha­que ao senhor capelão; então não vê que ele não está bem? Quando o devoto personagem se achou um pouco mais reconfortado, murmurou:
? A religião é uma questão de raciocínio puro e simples. Aquele que não acredita na Santa Trindade. (...)
? Chveik - disse Katz, cortando-lhe a palavra -, vaze mais um conhaque ao senhor capelão para o arribar.
Neste momento, o apóstolo revirou os olhos e só se rea­nimou depois da absorção de mais um copo de conhaque; mas este teve também o efeito menos feliz de lhe subir à cabeça.
De olhos tardos, o teólogo ainda perguntou a Katz:
? Você não acredita na Imaculada Conceição? E, em suma, acredita mesmo em Deus? E, se não acredita, porque é que se fez capelão? E, a seguir, desfaleceu.
Enfim, meteram-no na cama. Antes de adormecer, ainda jurou, levantando a mão direita para o céu: ? Acredito no Pai, no Filho e no Espírito Santo. Tragam­-me o breviário. Chveik pôs-lhe nas mãos um livro que estava esquecido em cima da mesinha-de-cabeceira. E foi assim que o piedoso capelão adormeceu segurando o Décameron de Bocácio.

(Jaroslav Hasek, O valente soldado Chveik)


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 159
Ano 15, Agosto/Setembro 2006

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo