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Alvoroço

Ensaio de etnopsicologia da infância

Para o meu amigo e salvador Alexandre Castro ? Caldas.

A casa, a família, toda a vizinhança,  fica certamente alvoroçada se um pequeno/a, adquire uma doença na época do Verão. É pior do que se fosse no Inverno.
Os verões são mais irrequietos, mais mexidos.  Toda a criançada na praia, no campo ou na piscina, e o coitado ou a coitada debilitado entregue ao cuidado da família, dividido entre o desejo de se divertir e o de, ao mesmo tempo, ficar prostrado sem se movimentar recebendo os cuidados familiares.
Nesta situação de doença, o horário de Verão passa então a ser outro. As proibições crescem mais e mais, aumentando na criança o receio do castigo se não faz o que lhe dizem e como lhe dizem que deve fazer.
A família fica em alvoroço, agitada, preocupada, em baixo, triste. As noites longas, encurtam-se. A temperatura não permite ao «pobre coitado» saltitar, rir, comer, contar histórias, especialmente quando ele tem a idade definida por um dos meus santos padroeiros ? Wilfred Bion em 1966 ? e pela sua professora Melanie Klein que, em 1932, ao fugir de uma Alemanha Germanizada, fascista, analisou o pequeno Richard durante três anos.  Nesse estudo, conclui Klein que Richard detesta os pais por causa das obrigações que lhe são impostas, especialmente na doença, no alvoroço, na agitação causado por uma sociedade doente, que parece não saber proteger os seus.
Vivência ainda mais complicada quando a criança está em fase de abertura à vida histórica ? já referida por mim ? e que ocorre pelos três, quatro, cinco anos de idade. Tempo da vida em que a criança começa a entender que não está só na vida, mas sim rodeado e dependente de outros que tratam dele.
Richard teimosamente acusa o pai de não amar a mãe, de não saber tomar conta dela, de não o amar. Wilfred Bion soube relacionar estes comportamentos com o fenómeno da abertura à História feita pelos mais novos.
Comportamentos revelados pelo alvoroço provocado pela doença, pela descoberta da heterogeneidade social e pela dificuldade em saber lidar com a existência e ausência da alegria e o saber jogar. As crianças acabam por entender a vida enquanto crescem e aprendem os factos que permitem uma calma e suave coordenação social, ao saber dizer sim aos adultos quando de facto lhe queriam dizer não. 
É a duplicidade de Boris Cyrulnik ao falar dos pequenos patos vilões. Ou, o meu próprio exemplo, nesta minha desobediência aos neurólogos, que, estando proibido como estou de abrir o computador por acidente cerebral vascular, não resisto. Doze anos a escrever regularmente na PÁGINA levam-me a transgredir. Transgrido na esperança de que o meu médico e o meu amigo, o Professor Doutor Alexandre Castro-Caldas faça de conta que não viu.
Antes de férias, aqui vos deixo este pequeno texto escrito no minuto derradeiro, antes de a PÁGINA fechar.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 159
Ano 15, Agosto/Setembro 2006

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

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