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O discurso presidencial de circunstância

Como já tinha acontecido em 25 de Abril, o Presidente Cavaco Silva,  em 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades (também já foi, em tempos de memórias tristes, Dia da Raça), fez à Nação um discurso de circunstância.
Esquivando-se a julgamentos sentenciosos, como faria  um juiz de causas e efeitos, optou por uma atitude patriarcal, em que se mostrou mais reflexivo do que assertivo, de tal modo eficaz que mereceu o consenso de diversas forças partidárias, as  quais, no geral,  o consideraram adequado à situação de um país em estado de expectante letargia -  esperando mais dos outros  que de si próprio. E como se quisesse   dizer paternalmente aos portugueses: ?olhem-se e julguem-se?, poupou-os a uma análise escatológica  que um observador cruel  provavelmente faria de  Portugal, desvelando, como diria  Lipovetsky,  ?o vazio que nos governa, um vazio sem trágico nem apocalipse?.
Economista de formação e  confiante nos recursos do mecanicismo neoliberal (mercado, competitividade e globalização), o Presidente  resistiu a engalanar os desafios da livre iniciativa com paracléticas esperanças, convidando  os portugueses  ?a reflectir sobre o que desejam e o que se dispõem a fazer?, contra a pecha de atribuírem aos outros, incluindo o Estado, a responsabilidade por tudo o que lhes é desfavorável.
Não deixando de apelar  ao orgulho nacional, mas declarando que não se prenderia a um ?ritual passadista?, conseguiu desviar-se, quanto possível,  do discurso celebrativo e encantatório  que antes do 25 de Abril emoldurava as virtudes da ?Raça?. Teriam sido propícias as duas semanas seguintes em que as praças e as almas se embandeiraram com as esperanças no sucesso do campeonato mundial de futebol,  cujas reacções  uma boa parte da intelectualidade nacional  considerou próprias de  ?um sistema mítico completo porque nele funcionam todos os elementos dos grandes mitos arcaicos?.
Ainda assim, Cavaco Silva  não se furtou a evocar o espírito de ambição e coragem que norteou  as descobertas marítimas de há cinco séculos (referiu mesmo a Índia, o Brasil e África), desafiando os portugueses a reassumirem ?a vontade granítica de triunfar?. E fixou: ?Não nos podemos resignar. Isso seria indigno do nosso passado, um desperdício do nosso tempo e o adiar do nosso futuro.?
Deste modo o Presidente religou uma ponte mínima sobre o Passado, aliás em consonância  com muitos cientistas sociais, como o atrás citado, na ideia de que    o sentido da continuidade histórica é visível quando ?uma geração gosta de se reconhecer e de descobrir a sua identidade numa grande figura mitológica ou lendária, que interpreta em função dos problemas do momento.?
Aquele filósofo refere como símbolos universais e espelhos da condição moderna, Édipo, Prometeu, Fausto ou Sísifo. Os portugueses relativamente ilustrados reclamariam, em ?competição?, outros vultos emblemáticos, de cunho nacional, como Camões ou Vasco da Gama, pelo mesmo facto de que - lembrando o nosso Eça ? ?os povos criam os heróis e os deuses de que têm necessidade?. Não surpreenderia que, durante o Mundial de Futebol, milhares, ou talvez milhões,  de portugueses escolhessem para símbolo das ?virtudes da Raça? um ou mais jogadores da selecção nacional... Quer se veja a  ?escolha? como um espelho do narcisismo típico de uma sociedade individualista ou como uma manifestação de puro patriotismo,  a natureza do sentimento que as anima  não é diferençável.
Nitidamente, Cavaco Silva não quis fazer um discurso histórico de ruptura, como seria aquele em que, num juízo rigoroso de valores, teria de balancear  causas e efeitos, para aferir as responsabilidades dos Estados, dos Governos e  dos anónimos (uma multidão, decerto)  que ele vem designando vagamente por ?sociedade civil?. Ficou-se, prudentemente, por uma ?providência cautelar?, acreditando (ou não) que a realidade dos tempos futuros obrigará, fatalmente,  todos os portugueses  a um judicioso exame de consciência.
Se, ao evocar as ?glórias? da Índia, do Brasil e de África e ao convocar, ?in extremis?, os emigrantes de sucesso para investirem as suas poupanças em Portugal, o economista pragmático se transformasse em historiador desapaixonado, talvez tivesse de concluir que o povo português, dentro e fora da pátria,  pagou caro as glórias dessas ambiciosas conquistas. E, se ousasse ir mais ao fundo,  talvez não deixasse de pensar que ainda por causa delas Portugal continua a pagar o custo da ?distracção? secular que o impediu de prever um futuro sem minas de ouro e árvores de patacas.
Dizendo isto ou algo semelhante, o que o obrigaria a definir uma ?estratégia? realista de recuperação das vontades que, ainda nos alvores das Descobertas,  colocaram   Portugal entre os países economicamente mais independentes e dinâmicos da Europa,  o Presidente faria o discurso necessário, - frontal e inequívoco ? no qual porventura começaria por dizer algo parecido com o que escrevemos, neste mesmo lugar, em Fevereiro de 2005 (?Sebastianismo à la carte?):
?Basta de fingir de ?francês? ou ?americano?. Antes que se percam os anéis e os dedos, toca a lavrar a terra com os bois que ainda ficaram e alimentar como última Esperança que não venham maus ventos das bandas de além fronteiras.?


  
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Edição:

N.º 159
Ano 15, Agosto/Setembro 2006

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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