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Sujeitos e sujeição na leitura de literatura

para a Natália

... ler literatura na perspectiva dos manuais escolares não é mais do que saber dizer certas coisas sobre os textos literários, não é mais do que ser capaz de devolver, como resposta do leitor, significados pré-formatados.

A propósito das provas de exame de Língua Portuguesa do 9º ano da escolaridade, fizeram-se ouvir afirmações, recorrentes nos últimos anos, sobre a exclusão da literatura da escola. Paulatinamente, sem que sejam evidenciados dados empíricos suficientes, vai sendo naturalizada a ideia de que os textos literários têm ali a sua existência ameaçada; nesta linha de argumentação, esta ameaça é vista como parte de um movimento mais geral de reconfiguração do projecto da escola e, sobretudo, das disciplinas da área do Português. Esta mutação, no entendimento em apreço, traduziria a conversão da educação formal a um programa que privilegiaria o desenvolvimento de capacidades comunicativas básicas, de natureza essencialmente pragmática, em detrimento de um outro programa, de matriz ?humanista?, orientado para a promoção da aquisição de conhecimentos fundamentais capazes de garantir a inscrição dos alunos num quadro determinado de referências culturais; a inserção neste quadro, apresentado como consensual e com poder para garantir sentimentos de pertença a uma comunidade nacional, seria posta em causa pela omissão dos textos literários canónicos que adequadamente o corporizariam.
É neste contexto que deve ser entendida a expressão de posicionamentos críticos face a ausência nos exames nacionais dos ?grandes? textos de literatura, ainda que neles se possa encontrar, como foi o caso, um texto de David Mourão Ferreira. Tal presença, porém, não é manifestamente tida como suficiente. Não que aquele texto não seja reconhecido como literatura, simplesmente não é o exemplo da literatura certa. E essa é, e isto é dito em múltiplos lugares e em múltiplos registos, sobretudo, a de Gil Vicente, a de Camões, a de Pessoa.
As motivações subjacentes à expressão daquelas posições são muito diversas. Descartem-se, por agora, aquelas que mais não são do que manifestações epidérmicas que relevam do combate politico quotidiano e considerem-se as que dão corpo a modos de entender os sentidos da literatura na escola. Desfaça-se, depois, o equívoco que consiste em considerar que o que a este respeito podemos verificar hoje representa, face ao que antes acontecia, uma regressão: histórica e sincronicamente, a literatura existiu(e) de modos diversos nos programas escolares, nos manuais escolares e nas práticas pedagógicas. A título de exemplo, a vinculação da literatura, entre ela a ?grande literatura?, a objectivos de endoutrinamento ideológico é patente em vários momentos da história do ensino da língua na formulação que para ela e encontrada nos textos oficiais; noutros momentos é reconhecível a valorização que a literatura pode trazer para o alargamento do campo experiencial dos alunos. E isto aconteceu a propósito de um leque diversificado de textos, canónicos ou não.
Se a questão da relevância dos textos que são seleccionados para serem lidos na escola é um dado importante do problema em equação, mais importante é a consideração daquilo que com os textos se faz. Os textos como produto, como dado, e os textos como produção, como fazer, são dimensões que é necessário considerar em articulação. No processo de recontextualização dos textos actuam instâncias de que podem propiciar a exploração das suas potencialidades ou que, ao contrário, podem induzir leituras restritivas, que os podem reduzir a caricaturas. É conhecido, a este propósito, o efeito redutor que no contexto português os manuais escolares exercem, por efeito das suas características e das suas condições de produção e recepção. É sabido como, em geral, ler literatura na perspectiva dos manuais escolares não é mais do que saber dizer certas coisas sobre os textos literários, não é mais do que ser capaz de devolver, como resposta do leitor, significados pré-formatados. É reconhecido, também, o poder de configuração que sobre as práticas pedagógicas estes materiais exercem.
A meu ver, a discussão deveria ser centrada em factos desta ordem. Nesta perspectiva, a pergunta decisiva será: quais são as práticas de leitura escolar significativas? Colocada em termos muito genéricos, a minha resposta valorizaria as práticas que encontram nos textos literários lugares e modos de aceder a versões do mundo e de mundos de linguagem relevantes para os sujeitos, que privilegiam a leitura de literatura como modo de autoconhecimento, e conhecimento dos outros e de reconstrução desse conhecimento. Para que isso seja possível, é necessário, porém, garantir uma condição, a de que os sujeitos envolvidos nas práticas de leitura, professores e alunos, sejam olhados efectivamente como sujeitos históricos, inscritos em coordenadas temporais, espaciais e sociais específicas, e que se exclua a leitura da literatura como prática de sujeição.


  
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Edição:

N.º 159
Ano 15, Agosto/Setembro 2006

Autoria:

Rui Vieira de Castro
Universidade do Minho
Rui Vieira de Castro
Universidade do Minho

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