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?Os exames não promoverão nunca a melhoria da qualidade da educação escolar?

Almerindo Janela Afonso, especialista em avaliação educativa, defende:
?A pressão social que se exerce hoje de forma tão evidente sobre a Escola e sobre os professores tem essencialmente motivações de ordem ideológica. ? Esta, pelo menos, é a opinião de Almerindo Janela Afonso, professor da Universidade do Minho e especialista em avaliação das políticas educativas, que convidamos para ser o interlocutor desta curta entrevista.

A sociedade portuguesa ? nomeadamente através da comunicação social ? tem vindo a ser confrontada com um discurso que advoga a realização de exames nacionais como única forma de avaliar os conhecimentos dos alunos e, por inerência, a prestação do sistema educativo. Concorda com esta argumentação?

Para responder directamente à questão que é colocada, direi que os exames nacionais não são, nem podem ser, a única forma de avaliar os conhecimentos dos alunos, nem são, nem podem ser, a forma mais adequada de avaliar o próprio sistema educativo. Isso, no entanto, não significa que os exames não cumpram ou não estejam a cumprir várias funções (manifestas e latentes) como as que, certamente, têm a ver com os desempenhos escolares (conjunturais) dos alunos ou com correlacionada visibilização social das desigualdades nas aprendizagens ou, ainda, com funções relacionadas com a gestão e diversificação dos percursos de escolarização ou, mesmo, funções simbólico-ideológicas.
A história das formas de avaliação, em geral, e dos exames, em particular, é já uma história longa, a qual, como se compreende, não pode ser feita neste curto espaço. Diria apenas que é com a expansão do capitalismo e com a centralidade crescente das organizações burocráticas modernas que se criam as condições sociais para que os exames passem a ser a forma privilegiada de obtenção de credenciais académicas necessárias ao recrutamento no mercado de trabalho ? credenciais essas que deveriam, por sua vez, traduzir hierarquias e sugerir expectativas e funções diferenciadas.
Se considerarmos a sua versão mais recente (ou da modernidade), baseada predominantemente em resultados mensuráveis de natureza quantitativa, os exames académicos formais surgem apenas no século XIX, e é nesse mesmo período histórico que o Estado passa a assumir um crescente controlo sobre os processos de certificação, nomeadamente para acesso aos serviços públicos.
Posteriormente, a transição para uma utilização mais ampla dos exames como forma de controlo social, centralizado e burocrático, far-se-á, muitas vezes, em estreita relação com a natureza política do próprio Estado. Assim, do meu ponto de vista, não é por acaso que os exames foram muito utilizados como instrumentos de controlo por Estados com uma natureza política não-democrática, como aconteceu, aliás, ao longo de quase meio século em Portugal, antes do 25 de Abril de 1974.
Não foi também por acaso que, entre nós, os exames foram rapidamente abolidos com a revolução democrática, e também não é por acaso que, depois de quase três décadas, eles (re)emergem numa conjuntura histórica de algum modo caracterizada pelo refluxo da democracia substantiva e pelo reforço do papel mais controlador (e autoritário) do Estado, a par da ampliação dos mecanismos de mercado como novos instrumentos de regulação social.


Em que contexto mais lato se pode ler esta crescente pressão sobre a escola?

A pressão social que se exerce hoje de forma tão evidente sobre a Escola e sobre os professores tem essencialmente motivações de ordem ideológica. Naturalmente que se queremos uma sociedade democrática que concretize e pratique os princípios da transparência e da participação não podemos deixar de defender a necessidade de a sociedade conhecer o que ocorre nas suas instituições, nomeadamente nas Escolas. Mas não é com a utilização de mecanismos de controlo, fortemente centralizados como os exames nacionais, que se promove uma prestação de contas e responsabilização sérias. Os exames têm, entre outras coisas, servido para satisfazer os neoconservadores que exigem que o Estado seja (nomeadamente através da avaliação, do currículo, da gestão e da actividade docente) mais controlador, fiscalizador, vigilante e disciplinador, e, simultaneamente, os exames têm também servido para satisfazer os neoliberais que querem, nomeadamente através da publicitação dos respectivos resultados académicos, induzir efeitos de mercado no sistema educativo, ajudando assim a promover formas de competição espúria (isto é, alheia às consequências mais nefastas dos rankings) e introduzir políticas de privatização e de mercantilização da educação que, entre outros efeitos, desvalorizam a escola pública enquanto escola publicamente comprometida com os princípios da igualdade real de oportunidades para todos, da ?pluralidade de excelências?, da justiça e da cidadania democrática.

A existência de exames no final de cada ciclo poderá contribuir para melhorar a qualidade do ensino em Portugal e para um maior empenho de alunos e de professores na aprendizagem?

Se considerarmos que a escola com qualidade só pode ser uma escola capaz de concretizar (simultaneamente) elevados padrões científicos, pedagógicos e democráticos, eu diria que os exames não promoverão nunca a melhoria da qualidade da educação escolar. Os exames podem, isso sim, exercer uma pressão efectiva (e muito barata) para que os professores, os alunos e as famílias tenham, respectivamente, uma consciência mais aguda das consequências do seu eventual (in)sucesso no ensino, eventual (in)sucesso na aprendizagem e, mesmo, eventual (in)sucesso na criação de algumas condições extra-escolares adequadas ao ensino e à aprendizagem.
Os professores, os alunos e as famílias, exclusiva ou predominantemente orientados para o sucesso académico e/ou para a melhoria e manutenção das suas posições e trajectórias sociais e profissionais, poderão, em certas circunstâncias, sentir um maior conforto (e gratificação pessoal) com a presença dos exames na medida em que estes se constituem como instrumentos selectivos compatíveis com estratégias competitivas, individualistas, elitistas e meritocráticas (baseadas no mero princípio da igualdade formal de oportunidades).
No entanto, é sempre possível que os resultados dos exames sejam  tratados e considerados social e politicamente, valorizando uma dimensão social e educacional mais formativa e compensatória (a nível pessoal, escolar e de sistema educativo), mas não me parece ser esta a lógica actualmente dominante. Quero, apesar de tudo, salientar que estão hoje disponíveis (e são praticadas) formas mais complexas, justas e consistentes de avaliação dos alunos, das escolas, dos profissionais e dos sistemas de ensino, mas, infelizmente, nos últimos anos, as políticas de avaliação estão, mais uma vez, em contra-ciclo com os avanços substantivos verificados na teoria e investigação em avaliação.

Concorda, por isso, com a necessidade de avaliação dos alunos, mas através de outras estratégias...

Certamente que concordo que os alunos (e também os professores, as escolas, os sistemas educativos e as políticas) devem ser avaliados. A questão é saber como chegar a formas de avaliação que sejam mais rigorosas e que sirvam projectos pessoais e colectivos mais justos, humanos e democráticos. Eu sou um defensor da avaliação formativa.
Mas sei que é muito difícil que esta seja praticada como seria desejável, sobretudo porque uma parte dos professores não tem uma formação em avaliação suficientemente consistente para problematizar as suas dimensões ético-políticas e teórico-conceptuais, ou as suas dimensões técnicas, metodológicos e operacionais.
Do mesmo modo, em muitas escolas não há condições organizacionais, pedagógicas e relacionais minimamente congruentes com a prática da avaliação formativa, os investimentos públicos estão em forte retracção, a desconfiança sobre os professores tem (injustamente) aumentado e, entre muitos outros factores, a dominância de mecanismos de vigilância (?vigilância das mentes e dos corpos?, como diria Foucault) está muito mais para formas regulatórias de avaliação (como os  actuais exames externos), do que para formas de avaliação mais congruentes com projectos potencialmente emancipatórios como a chamada avaliação autêntica, na qual incluo a avaliação formativa, os portfólios e outros instrumentos de avaliação.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 158
Ano 15, Julho 2006

Autoria:

Almerindo Janela Afonso
Universidade do Minho
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Almerindo Janela Afonso
Universidade do Minho
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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