À primeira turma que tive no Curso de Pedagogia em Angra dos Reis, cidade do litoral sul do Estado do Rio de Janeiro, propus uma pesquisa de campo na ilha Grande. A praia escolhida foi a de Araçatiba. Lá, enquanto os alunos entrevistavam as pessoas, fiquei caminhando pela praia, observando os grupos em ação. O tempo parecia ?andar? e fui aproveitando aquele sol, o mar e a ausência de barulho de carros, buzinas e freadas. Em dado momento, uma cena me chamou, particularmente, a atenção. Uma das moradoras da ilha saiu de sua casa trazendo nas mãos uma bacia com restos de comida. Parou na praia e jogou aquele ?lixo? na areia. Imediatamente, alguns urubus (1), se aproximaram dela, na maior intimidade, ciscando como uma bela criação de galinhas. Não me contive e me aproximei da mulher perguntando porque ela estava ?criando? urubus. Ela me olhou com um ar de espanto e respondeu: ? Ora, pra eles não irem embora! ? Mas, por que a senhora não quer que eles saiam daqui? ? Agora não tem turista, a praia fica limpa, e os bichinhos não têm o que comer, daí que eles vão buscar comida em outra praia. Quando chegar o tempo dos turistas, quem vai limpar a sujeira que eles deixam por todo lado? São os urubus que fazem isso. Nunca me ocorrera que alguém ?criasse urubu?. Continuei a conversar e a aprender com aquela senhora, possivelmente analfabeta, que tinha tantas lições a dar à professora universitária que queria ensinar Educação Ambiental. Nossa conversa se voltou para a questão do tempo: tempo com turistas, tempo sem turista. Ela me disse que não tinha relógio, nem ?folhinha? (calendário) em casa, mas que sabia marcar o ?tempo? direitinho. Como? Fiquei curiosa. Ela, então, me deu uma aula sobre relações ambientais: ? De vários modos, ela disse. ? Primeiro depende do peixe que meu marido traz do mar, cada tempo tem seu peixe. Tem o tempo das virações do mar e das chuvas. Depois os filhos chegam do continente, onde trabalham e estudam. Aí, eu sei que é o tempo das férias. Os turistas vêm logo atrás. Aí, é tempo de fritar bolinho de aipim (2) para arranjar uns trocados a mais com os turistas. Mas, do barulho que eles fazem e da sujeira que eles deixam, eu não gosto «nadinha». Daí, ela me disse: ? O tempo aqui é calmo, moça! É assim que tem que ser. Assim foi no tempo dos meus pais e no tempo dos pais deles. Eu queria que essa calma ficasse pros meus netos e pros netos deles. Lendo Boaventura de Sousa Santos compreendo melhor essa «questão do tempo» que a senhora aponta. (...), ?a compreensão do mundo e a forma como ela cria e legitima o poder social tem muito a ver com concepções do tempo e da temporalidade?. (2004:779). Sim vivemos no presente, devemos valorizá-lo, dando-lhe um sentido para que o vivamos plenamente, possibilitando a construção consciente do futuro que é o espaço-tempo necessário para conhecer e valorizar a inesgotável experiência social que está em curso no mundo hoje. Por outras palavras, só assim será possível evitar o gigantesco desperdício da experiência de que sofremos hoje em dia. (idem: 780)
Notas:
- Pássaros negros que vivem de comer restos de comida apodrecida.
- Raiz que faz parte da dieta popular em todo o Brasil.
Referência Bibliográfica:
- Santos, Boaventura de Sousa; Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. (In) Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez, 2004. (777-821).
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