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A fraternidade nas famílias reconstruídas

No último texto falámos de como o divórcio dos pais toca diferentemente cada um dos filhos. Neste texto queremos realçar como as famílias reconstruídas, após esse acontecimento familiar, podem ser ocasião de desenvolvimento individual dos filhos e da fraternidade entre eles. Vejamos.

Se bem que, como as estatísticas comprovam, menos mães do que pais-homens se volte a recasar, o certo é que a reconstrução de uma nova família está muitas vezes presente na vida futura das crianças de pais divorciados. É então usual que a fratria original seja obrigada ao convívio com outras crianças ? sejam meios-irmãos e/ou irmãos por parentesco ? e com outros inúmeros adultos, nomeadamente avós ? trazidos pelos novos parceiros dos pais biológicos.
Se ambos os pais se recasarem e se cada um dos seus novos parceiros já tiver filhos de anteriores casamentos, o número de pessoas envolvidas na nova família mosaico pode ser de algumas dezenas.
As variações são imensas e complexas. A regra é mais adultos significativos para cada criança e mais crianças em fratrias mistas ? de irmãos com os quais se viveu/vive a totalidade da infância, e alguns meios-irmãos e irmãos por afinidade com os quais se vive parcialmente e só a partir de determinada altura.
Como é que se constrói, pois, a fraternidade nestas fratrias reconstruídas?
Sabemos que o amor é algo que se constrói e não algo que se impõe. Desta evidência deviam estar cientes os pais, quando parecem obrigar os filhos a aceitarem incondicionalmente, a amarem, como irmãos, as novas crianças entretanto acrescidas à família.
Se já com os irmãos que nasceram connosco ? melhor: que estavam lá, na família, quando nascemos, ou nasceram alguns anos depois de nós e com os quais sempre vivemos ? nem sempre, em todos os momentos, é muito fraternal a relação que mantemos com eles?
Eles, os pais, tiveram o direito de escolher os seus companheiros, e agora os seus novos companheiros. Os filhos não têm escolha?
Os fins-de-semana, parte das férias, nalgumas festas? há que estar com essa irmandade, sentados à mesma mesa, muitas vezes partilhar o mesmo quarto, os mesmos brinquedos, jogos, o mesmo computador?
É claro que o espaço psicológico que, sobretudo os meios-irmãos, partilham agora com as crianças da fratria original ? um dos pais ? é mais importante do que o espaço físico-material. Mas a perda ou a inexistência deste também joga um papel relevante na (im)possibilidade de amar estes novos membros da fratria.
Exceptuando os casos de guarda conjunta ? os filhos ficam à guarda, simultânea, dos dois progenitores, alternadamente, o mesmo tempo em cada lar ? na maioria dos casos a guarda fica a cargo de, apenas, um dos progenitores.
Nesta última modalidade, a mais usual, os filhos ficam com uma residência fixa, o progenitor que sai de casa poderá vê-los sempre que quiser, desde que essas visitas não prejudiquem os períodos escolares e de descanso dos filhos. Para além disso, fica com o direito/obrigação de ter os filhos durante alguns fins-de-semana ? normalmente um de quinze em quinze dias ? parte das férias e, ano sim ano não, nas festas anuais (Páscoa, Natal, aniversários?).
É neste tempo de visitas ao lar do pai que saiu de casa que podem acontecer algumas perdas de espaços vitais. Se uma criança tem, no seu lar mais constante, um quarto próprio, um computador só dela, etc., pode-lhe ser difícil aguentar a estadia na casa do pai ausente se tiver que partilhar com uma ou mais crianças esses lugares onde ela se pode sentir uma intrusa e visita ? às vezes mal recebida ?, dado que é um lugar dessas outras crianças que vivem aí e os desfrutam quotidianamente.
Se para uma criança ainda pequena essa mudança pode ter a excitação de uma miniférias onde, para além do pai, pode ter a aventura de novas brincadeiras com uns pares familiares e divertidos, para um adolescente ? que tem no seu quarto o lugar da sua identidade e intimidade ? dormir no divã da sala ou no quarto com outros adolescentes ou crianças, mesmo que meios-irmãos, pode ser um tempo de perda de referências e de incómodo.
Para este, sobretudo, se fosse sempre possível, seria desejável que no novo lar do pai (homem ou mulher) pudesse ter também o seu quarto, mesmo que estivesse fechado durante parte do tempo. Aliás, guardar para os filhos, um espaço só para eles quando lá fossem em visita, podia significar, tanto para crianças como para adolescentes, que têm um lugar cativo no coração desse pai com quem não se está todos os dias e os trocou por uma nova companheira e um ou mais novos filhos.
Uma equivalência entre espaço físico e espaço mental que, como se sabe, se é arreigada na infância e adolescência, os adultos não a deixam de fazer ? ou ainda mais! Quem não se sente, após alguns longos dias fora de casa, com vontade de voltar a ela, também para voltar a si, a uma parte significativa de si?
Não bastará, portanto, a vontade imensa de se estar com o pai mais ausente. Se as condições de conforto físico-materiais não são tudo, são importantes para se construir boas relações com esses novos adultos e crianças da nova família. Sentir-se aí acolhido e bem, afectivamente, pode começar por esse sentimento de pertença relativamente a uma parte da casa, física, que é também sua, e não apenas dos outros que aí habitam diariamente.
Para além da partilha do pai e dos espaços nessa outra casa, nas fratrias reconstruídas podem acontecer outras mudanças ? como sejam as diferentes regras: das refeições, do deitar?
E outras perdas, nomeadamente a da posição fraternal que se tinha na fratria original. Por exemplo: um irmão mais velho, habituado a comandar os seus irmãos mais novos na sua fratria original, pode ser o mais novo da fratria reconstruída, com os seus irmãos por parentesco, o que o obriga, quando interage com eles, a que se submeta aos seus ditames?
Essa mudança nos papéis fraternais ? às vezes no mesmo dia! ? embora possa conduzir a uma maior maleabilidade no seu comportamento relacional ? o que é enriquecedor ? pode, igualmente, ser um factor de perturbação, sobretudo nos primeiros contactos nesse novo contexto relacional que é a fratria reconstituída.
Em suma: apesar de algumas perdas a que podem estar sujeitas as crianças quando são introduzidas numa fratria reconstruída ? a principal, sublinhamos, é a partilha de um ou dos dois pais ? não queremos com isto dizer que o alargamento fraternal seja sempre, e de todo, antónimo de qualidade. Sabemos quanto, nas fratrias biológicas (de irmãos germanos), o acréscimo de um novo irmão é factor de risco e perturbador, pelo menos inicialmente, mas depois, com o decorrer do tempo, ele se torna numa mais-valia. E que a uma grande quantidade de irmãos equivale, muitas vezes, uma maior riqueza e diversidade de interacções sociais e maiores possibilidades de amar e ser amado fraternalmente.
Também para as fratrias reconstruídas se pode dizer o mesmo. Com os meios-irmãos e/ou irmãos por parentesco e/ou irmãos adoptivos algumas crianças podem, até, encontrar maiores afinidades e prazer na relação do que com os irmãos germanos. Ou para um filho único pode ser gratificante irmanar com esses seres quase da família, mas contudo mais reais do que os irmãos imaginários que muitas vezes engenha.

Nota: Este texto é um extracto, ligeiramente alterado, do livro da autora Ser único ou ser irmão, Oficina do Livro, 2005.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 157
Ano 15, Junho 2006

Autoria:

Otília Monteiro Fernandes
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro, Chaves
Otília Monteiro Fernandes
Univ. de Trás-os-Montes e Alto Douro, Chaves

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