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Os significados do trabalho

A palavra «trabalho» vem do vocábulo latino «tripaliare», do substantivo «tripalium», isto é, aparelho de tortura formado por três paus, ao qual eram atados os condenados, ou que também servia para manter presos os animais difíceis de ferrar. (...) Inferir disso que o «fenómeno trabalho» é, em sua totalidade, uma actividade de sofrimento, não é só um lapso compreensivo, mas sim um enorme despropósito teórico.

 ?Se me perguntares como é a gente daqui, responder-te-ei: como em todo o lado. A espécie humana é de uma desoladora uniformidade; a sua maioria trabalha durante a maior parte do tempo para ganhar a vida, e, se algumas horas lhe ficam, horas tão preciosas, são-lhe de tal forma pesadas que busca todos os meios para as ver passar?. Estas palavras de Goethe, de forma cifrada, permitem uma aproximação ao complexo fenómeno do trabalho.
Etimologicamente, decerto que não há necessidade de se fazer maiores rodeios em torno do assunto. A palavra «trabalho» vem do vocábulo latino «tripaliare», do substantivo «tripalium», isto é, aparelho de tortura formado por três paus, ao qual eram atados os condenados, ou que também servia para manter presos os animais difíceis de ferrar. Daí, logo se fez a associação do trabalho com tortura e sofrimento. Mas parar pela significação etimológica do fenómeno, é um grave equívoco ? no qual muitos têm incorrido -, pois, assim sendo, à maneira positivista, se produz uma compreensão brumosa, alimentada por elementos empíricos secundários e pela a-historicidade.
Ora, o trabalho enquanto sofrimento é uma «forma histórica específica de trabalho», resultado de determinadas relações sociais, conforme, também, determinados padrões societais, nomeadamente os padrões da ortodoxia do sistema produtor de mercadorias. Inferir disso que o «fenómeno trabalho» é, em sua totalidade, uma actividade de sofrimento, não é só um lapso compreensivo, mas sim um enorme despropósito teórico. É não entender a dupla dimensão do trabalho, designadamente a sua dimensão ontológica.
Quer dizer, o trabalho é mais do que trabalho assalariado/alienado, forma mercadoria, dispêndio de força no sentido fisiológico para gerar o valor dos produtos. Ele é também relação de intercâmbio entre os seres humanos e a natureza; é um momento de produção de coisas com sentido de utilidade para quem as faz, não obedecendo à lógica do mercado que rege a troca de mercadorias; é um meio através do qual as pessoas modificam o mundo e se modificam a si próprias, afinal toda a história mundial não é senão a produção do ser humano pelo trabalho. 
Portanto, por assim ser, é compreensível que Goethe fale da ?desoladora uniformidade no trabalho?, mas, ao mesmo tempo, afirme que se ?algumas horas sobram aos seres humanos, elas são tão pesadas que eles fazem de tudo para que elas passem?. Ou seja, quer isto significar que, de uma parte, está o trabalho assalariado, alienado, imerso na rotina de compra e venda de mercadorias, onde a própria força de trabalho é uma mercadoria; de outra parte, livre deste fardo, está a dimensão ontológica do trabalho, evidenciando a necessidade que as pessoas têm de estruturar relações com o seu meio que as tirem da inércia e dêem sentido às suas vidas, o que se atinge, lembrando Lukács, pela teleologia do trabalho.
É por não compreenderem (ou não considerarem devidamente) a dupla dimensão do trabalho que determinadas análises têm postulado o seu fim, seja como decorrência das transformações contemporâneas no mercado de emprego, seja, até de ?modo progressista?,  como horizonte a alcançar. Tanto numa perspectiva como noutra, toma-se o trabalho assalariado como representativo do trabalho em sua totalidade. Isto é, no primeiro caso, as mudanças na forma do trabalho e no seu conteúdo, na sua divisão e gestão, bem como a sua redução quantitativa no processo produtivo, são confundidas com o seu desaparecimento; no outro caso, pretende-se que a superação do assalariamento/alienação significa o desaparecimento do trabalho em sua globalidade. Nada mais equivocado analiticamente. O trabalho, em sua dimensão ontológica, permanece.
No que se refere ao trabalho assalariado, actualmente, mesmo dando-se alguma atenção às teses que pleiteiam o fim da sua relevância no processo de produção, em função das novas tecnologias, é, no mínimo, um disparate imaginar que ele perdeu completamente a centralidade como elemento gerador de valor das mercadorias. Supor a generalização de um modelo onde os trabalhadores já não transformaram objectos materiais, mas sim se limitam, em número reduzido, a supervisionarem máquinas computadorizadas, sob o capitalismo contemporâneo, é uma grande asneira, pois isto acarretaria como consequência inevitável a destruição da própria economia de mercado, como resultado da incapacidade de integralização do processo de acumulação de capital.
O que há que se realçar é que as novas configurações do trabalho assalariado são próprias da dinâmica demandada para o funcionamento do capitalismo contemporâneo. Por exemplo, neste, o carácter da produção pela produção, que supunha uma intensa utilização de mão-de-obra, desdobra-se na disputa entre capitalistas financeiros que levam a irracionalidade do sistema ao absurdo: o jogo das acções é a luta pelo lucro sem a mediação da produção.
Compreender tal facto, em articulação com a compreensão relativa aos  «significados do trabalho», é condição para que, também buscando inspiração em Goethe, não se permita que o quotidiano siga com cada um no seu suposto papel habitual, desconhecendo-se que tudo está em causa, e, por isso mesmo, assistindo-se a vida continuar como se nada acontecesse.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 156
Ano 15, Maio 2006

Autoria:

Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil
Ivonaldo Neres Leite
Univ. do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil

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