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Arte e parte

Quando queremos negar a uma Pessoa o direito de intervir e de opinar sobre um assunto, dizemos, em castelhano,  que não tem «en él ni arte ni parte». Para afirmar o direito que os cidadãos e as cidadãs têm na sociedade a opinar e a intervir, eu quis dar a volta a esta velha expressão castelhana dizendo: «ate y parte».

Os cidadãos têm o direito (e o dever, não o esqueçamos) de participar. Porque não são simples súbditos que se calam, que acatam e cumprem as leis, que pagam o preço correspondente quando as infringem e que, em definitivo, obedecem. Os cidadãos não são profissionais da obediência mas sim da responsabilidade. Não são tampouco meros clientes, que opinam sobre compras e vendas, que analisam o mercado e que negoceiam segundo os seus interesses. Somos cada vez mais súbditos e clientes na sociedade de mercado. Coisa muito diferente é ser cidadão e exercer a cidadania numa sociedade democrática. Nenhuma democracia está perfeitamente desenvolvida e para sempre, é preciso melhorá-la em cada dia e fazê-la crescer. A democracia é como uma árvore que é preciso regar, alimentar, endireitar e podar. Uma árvore que pode secar e morrer, que pode ser destruída pelas pragas e que alguns lenhadores desejam cortar para obter um benefício particular.
Vou concretizar em dez princípios as exigências da cidadania, sabendo que podem ser mais e, inclusivamente, que pode haver outras mais importantes. O cidadão e a cidadã:
Pensam, analisam, sabem porque acontecem as coisas. Não são ingénuos mas críticos. Sabem que existem fios ocultos que provocam a tomada de decisões, sabem como iluminar esses fios para não cair na armadilha da manipulação. Não ficam a chupar no dedo. Digamos que «os topam». Questionam as leis injustas e as decisões arbitrárias.
Falam, opinam, levantam a voz, exprimem-se com liberdade sem as condicionantes do medo ao poder, sem cair na adulação e sem fazer caso das admoestações dos cépticos.
Participam na vida pública com a sua actividade laboral e social: votam, intervêm activamente entre votações, sabendo que a democracia não acaba, apenas começa, nas urnas. Manifestam-se, intervêm nos assuntos de interesse geral e não apenas nos estritamente privados.
Associam-se, não estão sós, não ficam isolados, organizam-se para a acção, conscientes de que o grupo multiplica a força individual.
Exigem, assumem riscos face ao poder, praticam a coragem cívica que é uma virtude democrática que nos faz apoiar causas que de antemão sabemos estarem perdidas.
Informam-se, lêem criticamente, estão em dia, questionam as explicações inconsistentes e interesseiras tanto do Governo como da oposição. Estão conscientes de que os políticos devem estar ao serviço da cidadania e não o inverso.
Respeitam os outros e valorizam a diversidade. Sabem que existem culturas diferentes e pessoas diferentes, para alem da dignidade essencial de cada ser humano.
São solidários, sensíveis à injustiça, compadecem-se com os que sofrem, não se preocupam só consigo, não encolhem os ombros perante as desigualdades que existem no seu país e no mundo.
Vivem de forma honesta, trabalham responsavelmente e esforçam-se por melhorar ética e socialmente a sociedade em que vivem.
Cumprem com os seus deveres públicos: pagam fiel e integralmente os impostos, cumprem as leis, respeitam as regras de trânsito e estão conscientes de que a liberdade individual tem claros limites no próximo.
A sociedade em que vive e trabalha um cidadão cumpridor é melhor por ele fazer parte dela. Ele constitui-se num modelo que se deveria imitar. Face à  posição egoísta que faz com que cada um se preocupe apenas consigo (ou com os seus) existe a atitude cidadã que tem em conta o bem comum e os interesses de todas as pessoas, especialmente das mais desfavorecidas.
Não se nasce sabendo ser cidadã e cidadão. A aprendizagem da cidadania faz-se na família, na escola e na sociedade. Surpreende-me que alguns sectores, que defendem a disciplina de religião nas escolas, condenem como sectária a disciplina de educação para a cidadania que pretende despertar e cultivar o respeito para com todas as identidades, culturas e religiões.
A aprendizagem da democracia e da cidadania, tem sérios obstáculos que a bloqueiam ou dificultam. Referir-me-ei a três especialmente graves:
O primeiro é a cultura neoliberal que põe em destaque o individualismo, o salve-se quem puder, a competitividade desleal, o desprezo pelos valores e a obsessão pela eficácia.
O segundo é o mau exemplo de quem se deve constituir como exemplo para os cidadãos. Quando numa sociedade quem governa se torna corrupto, está a fazer um convite a que cada um faça o mesmo. A tal ponto que quem não se aproveite da situação que tem ao alcance da mão se considere e seja considerado um imbecil.
Em terceiro é a proliferação de modelos que exercem um enganoso atractivo sobre a juventude. Os que adquirem rápida e facilmente dinheiro, fama ou poder, convertem-se em exemplos a seguir, em modelos a imitar, no caminho a percorrer para se ter êxito.
É triste, injusto e preocupante que se converta em modelo de cidadania aquela pessoa que é capaz de entrar depois de ti por uma porta giratória e sair antes.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 156
Ano 15, Maio 2006

Autoria:

Miguel Ángel Santos Guerra
Professor Catedrático de Didática e Organização Escolar, Universidade de Málaga
Miguel Ángel Santos Guerra
Professor Catedrático de Didática e Organização Escolar, Universidade de Málaga

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