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A Bandeira e o Pai-Natal. Arte urbana ou mercadorias globais?

A ideia feita que temos sobre as cidades e os seus prédios como barreiras opacas, como territórios de individualidade, pode ser questionada por um conjunto de fenómenos que têm vindo a revelar-se ultimamente. A comunicação face a face parece estar condenada a circuitos muito reduzidos de relacionamento urbano, mas existe uma outra metalinguagem a espreitar. As sociabilidades podem estar vagamente diluídas pela vertigem do mundo moderno, mas despertam formas colectivas de comunicação emergentes que começam a merecer alguma atenção analítica.
Junho 2004, Lisboa. Um dia acordámos e as fachadas dos prédios na cidade não eram mais as mesmas. As janelas, que na cidade costumavam dizer pouco de quem vive por detrás delas, revelaram-se fonte das mais curiosas manifestações de intervenção urbana. Bandeiras nacionais e mais bandeiras nacionais, em pano, papel ou plástico, penduradas nos parapeitos, presas em paus, coladas nas janelas, espreitando a urbe e esperando resultados de um campeonato europeu de futebol e lágrimas ao cair do pano. Aos desígnios do treinador da selecção portuguesa de futebol de nacionalidade brasileira, toda a cidade ? e o país ? aceita o desafio de engalanar-se.
Não foram só as fachadas dos prédios, é bem verdade, também os carros, as ruas, as vitrinas das lojas se encheram de símbolos da nação, mas foram as janelas que marcaram essa mancha urbana de uma iconografia nacionalista poucas vezes experimentada com tanto sucesso. Jornais, revistas, papelarias e sobretudo as famosas ?lojas dos chineses? precipitaram-se no comércio insano de bandeiras nacionais, nalguns casos verdadeiramente re-inventadas.
A comunidade afectiva, nos termos do sociólogo alemão Ferdinand Tönies, de solidariedade parental e vicinal que a modernidade tanto teimou em substituir, senão mesmo eliminar, emerge repentinamente como que re-semantizada nesta comunidade dos apoiantes da ?nossa selecção? geminando o léxico da emoção e o desportivo.
O que aparentemente se expõe à janela, não é apenas a bandeira mas uma espécie de apresentação de uma comunidade de companheirismo num círculo aconchegante de actos semelhantes, que não é necessariamente um círculo de consenso mas de entendimento. As bandeiras sublinham apenas esse desejo cíclico de imaginar uma comunidade, movido por um saudosismo atávico de um paraíso perdido que é a essência da nação projectada agora na ?nossa selecção?. As bandeiras são portanto excelentes veículos para a criação de comunidades de sentimentos.
Benedict Anderson, um estudioso dos nacionalismos do virar do século XIX, utilizava o conceito de ?comunidade imaginada? para falar de uma entidade moderna: o Estado-Nação ? uma comunidade política imaginada porque nem mesmo os membros das menores nações conhecerão a maioria de seus compatriotas, nem os encontrarão, embora na mente de cada um esteja viva a imagem de sua comunhão. E as janelas da cidade aparentemente comungam dessa representação de comunidade imaginada. E até mesmo para os que, como eu, nunca decidimos desfraldar bandeiras.
Dezembro 2005, novamente a cidade desperta nos parapeitos com uma enchente de Pais Natal trepadores. Em anos anteriores já tinham espreitado a luz do dia em tentativas mais ou menos desorganizadas. Entretanto, foi como se o ensaio das bandeiras tivesse definitivamente despertado esta modalidade de expressividade colectiva. O que agora vingou foi justamente uma outra ideia: a de um grande colectivo, aparentemente espontâneo que nasce de coisa nenhuma e se transforma em alma plural de tantos lares anónimos. Ou como cantava Sérgio Godinho: «Já que é já Natal / se um Pai Natal houver / mais que dois ou três / então à vez / podemos ser, sei lá / o Pai Natal sempre de alguém / de quem não tem direito / ao seu presente/ resplandecente.».
De todos os tamanhos, estes personagens da dádiva mitigada da era moderna reforçam a ideia de que os membros de uma comunidade imaginada partilham também narrativas, pueris e míticas, sobre o lugar da presentificação. Como se a exibição dessa adesão a tropos essenciais natalícios fossem qb para a consolidação do seu entendimento. O Natal é também um tempo narrativo, onde se consolidam ideias sobre nós próprios.
Curiosamente, eis que mal a quadra natalícia se afasta, retomam as bandeiras o seu lugar cativo, temporariamente suspenso, e se reacendem imaginários pátrios ? em menor número é certo, mas deixem chegar o Mundial de Futebol que se avizinha? E afinal, que existe de distintivo nestas duas cenografias urbanas?
Falamos por um lado de evidente arte pública. Este jogo de objectos condensa ainda sentidos estéticos que se aproximam da obra de arte. Depois do vanguardismo, o «art world» ocidental não consegue rejeitar liminarmente formas alternativas de expressão. Mas também falamos de uma espécie de acção colectiva não organizada. Uma performance com perfume a «pastiche» publicitário. Na verdade, a organização destes cenários urbanos pertence sobretudo ao mediador mental: a comunidade imaginada. O sentimento de pertença mediado por este meio de comunicação que é a exposição das hiper-significantes bandeiras e Pais Natal parece dar razão ao sentido das clássicas interpretações de McLuhan (os meios de comunicação que, através de sua acção modificam o espaço e o tempo, transformam a própria ideia de comunidade). E falamos finalmente, de uma mercadoria da ressaca capitalista pós-moderna. O tráfico de bens culturais é um dos fluxos de circulação globais mais complexo. As bandeirinhas produzidas na China e os Pais Natal de Taiwan também recordam a já velha definição anedótica da globalização: comprei um tapete persa «made in Taiwan» numa loja de chineses na Suíça. A quem assacar então a responsabilidade final da lusa bandeira desfraldada ou do grupo de Pais Natal alpinistas que ciclicamente habitam a janela do meu vizinho?
A resposta não é una mas multíplice, afinal como as bandeiras e os Pais Natal.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 156
Ano 15, Maio 2006

Autoria:

Paulo Raposo
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, ISCTE, Lisboa
Paulo Raposo
Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, ISCTE, Lisboa

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