T. escreveu, num papel amarelecido, fixado na porta do frigorífico com um íman daqueles que trazemos do estrangeiro (a vermelhíssima cabine telefónica de Londres), um recado já habitual - ?Pai, preciso que me emprestes o carro. Esta noite. De preferência com gasolina, sabes como é. Venho antes de tu saíres. Um beijo. T.?. O pedido, e até mesmo o tom, um meio tom imperativo, aliás esperado, talvez até desejado, não surpreende. O que surpreende é o papel usado, o verso de uma folha do poemário da Assírio & Alvim para o ano 2000. A folha de 1 de Outubro, que foi um domingo nesse ano de 2000. Reproduz um poema que já caiu no domínio público, no que toca a direitos de autor. ?Quando soube ao fim do dia?. Walt Whitman. ?Quando soube ao fim do dia que o meu nome fora aplaudido no Capitólio, mesmo assim nessa noite não fui feliz. // E quando me embriaguei ou quando se realizaram os meus planos, nem assim fui feliz?. Será que T., que já anda nos 19 anos e na Universidade, descobriu a poesia? Ou foi apenas obra do acaso reciclar o verso da folha de 1 de Outubro de 2000 do poemário da Assírio & Alvim? E logo Whitman. E logo esse ?Quando soube ao fim do dia? que fala de águas que invadem lentamente as praias, de silêncios, de murmúrios de ondas e de outras inquietudes. Intrigado fui ver se faltavam mais folhas no meu poemário do ano 2000 e surpreendi-me com o facto da página correspondente ao dia 1 de Outubro se encontrar intacta. O papel amarelecido onde T. num meio tom imperativo, pedira um carro atestado de gasolina, não pertencia ao meu poemário. Que estranho. De onde terá T. retirado a folha onde escreveu o pedido? E como terá T. descoberto aquele verso da página? E logo um poema tão marcado?! Há coisas que não se perguntam. Como Auguste Rodin eu não invento nada, eu redescubro. E às vezes é apenas tão simples e surpreendente descobrir versos no verso da página. A poesia está muito mais perto da gente do que aquilo que às vezes pensamos.
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