Página  >  Edições  >  N.º 156  >  Os versos do verso da página

Os versos do verso da página

T. escreveu, num papel amarelecido, fixado na porta do frigorífico com um íman daqueles que trazemos do estrangeiro (a vermelhíssima cabine telefónica de Londres), um recado já habitual - ?Pai, preciso que me emprestes o carro.  Esta noite. De preferência com gasolina, sabes como é. Venho antes de tu saíres. Um beijo. T.?.
O pedido, e até mesmo o tom, um meio tom imperativo, aliás esperado, talvez até desejado, não surpreende. O que surpreende é o papel usado, o verso de uma folha do poemário da Assírio & Alvim para o ano 2000. A folha de 1 de Outubro, que foi um domingo nesse ano de 2000.  Reproduz um poema que já caiu no domínio público, no que toca a direitos de autor. ?Quando soube ao fim do dia?.  Walt Whitman. ?Quando soube ao fim do dia que o meu nome fora aplaudido no Capitólio, mesmo assim nessa noite não fui feliz. // E quando me embriaguei ou quando se realizaram os meus planos, nem assim fui feliz?.
Será que T., que já anda nos 19 anos e na Universidade, descobriu a poesia? Ou foi apenas obra do acaso reciclar o verso da folha de 1 de Outubro de 2000 do poemário da Assírio & Alvim? E logo Whitman. E logo esse ?Quando soube ao fim do dia? que fala de águas que invadem lentamente as praias, de silêncios, de murmúrios de ondas e de outras inquietudes.
Intrigado fui ver se faltavam mais folhas no meu poemário do ano 2000 e surpreendi-me com o facto da página correspondente ao dia 1 de Outubro se encontrar intacta. O papel amarelecido onde T. num meio tom imperativo, pedira um carro atestado de gasolina, não pertencia ao meu poemário. Que estranho. De onde terá T. retirado a folha onde escreveu o pedido? E como terá T. descoberto aquele verso da página? E logo um poema tão marcado?!
Há coisas que não se perguntam. Como Auguste Rodin eu não invento nada, eu redescubro. E às vezes é apenas tão simples e surpreendente descobrir versos no verso da página.
A poesia está muito mais perto da gente do que aquilo que às vezes pensamos.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 156
Ano 15, Maio 2006

Autoria:

Júlio Roldão
Jornalista do Jornal de Notícias
Júlio Roldão
Jornalista do Jornal de Notícias

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo