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"Viabilidade do Estado-Providência não é uma questão técnica, é uma questão política"

Boaventura de Sousa Santos é professor e investigador da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e director do Centro de Estudos Sociais desta universidade. Enquanto elemento da Comissão do Livro Branco para a Segurança Social, organizou a redacção do relatório minoritário que defendeu a viabilidade deste subsistema em Portugal. Nesta curta entrevista, defende que o Estado-Providência é sustentável tanto na Europa como em Portugal, dependendo em grande medida de opções políticas mais do que de argumentos de ordem financeira.

O Estado-Providência continua ou não a ter hoje condições para subsistir na Europa, e nomeadamente em Portugal?

O Estado-Providência tem razão plena de subsistir não só por ser possível de o pôr em prática como por constituir uma das características fundamentais do chamado modelo social europeu. Este modelo tem sido criticado por alguns sectores mais conservadores e alvo de uma tentativa de desmantelamento, ainda não totalmente concretizado porque os cidadãos europeus, através das vias democráticas, se têm oposto a esse processo.
Em Portugal, a crise de existência do Estado-Providência advém do facto de ele se ter instituído num período tardio, após a revolução de 1974, e em contraciclo, pelo que nunca se conseguiu afirmar plenamente. Além disso, desde há seis anos que se assiste, por diversas razões, ao estancar do aprofundamento deste princípio, em parte por distorções, como o facto de os fundos disponíveis para a área social estarem a ser canalizados para garantir subsídios de desemprego, que aumentou exponencialmente no país.

Alguns dos defensores do desmantelamento deste modelo social apresentam argumentos para a sua eminente falência como o envelhecimento da população, o aumento das taxas de desemprego ou o aumento dos custos sociais ligados à saúde, factores que, por inerência, diminuem as receitas dos cofres do Estado. Parecem-lhe argumentos plausíveis?

Obviamente que são argumentos plausíveis desde que sejam contextualizados nas opções políticas que é preciso tomar para o país. As condições sociais vão-se transformando e isso, naturalmente, implica transformações no próprio Estado-Providência. Mas há opções políticas que podem ser tomadas. E elas passam, nomeadamente, por questionar se é mais importante construir estádios de futebol ou destinar mais dinheiro para a segurança social, ou comprar submarinos em leasing ou investir na área social.

Está a afirmar, portanto, que mais do que uma decisão técnica, o futuro do Estado-Providência e da sustentabilidade da Segurança Social passa por uma opção política?

Sim, claramente. Enquanto membro da Comissão da elaboração do Livro Branco da Segurança Social, tive e continuo a ter acesso a informação que demonstra que a questão da viabilidade do Estado-Providência não é uma questão técnica, é uma questão política. O envelhecimento da população é algo que deve ser enfrentado, mas com transformações que devem ser operadas ao nível da Segurança Social. E transformar este subsector, ou mesmo o Sistema Nacional de Saúde, não passa por privatizá-lo mas antes por cumprir recomendações e propostas no sentido de introduzir alterações que assegurem a sua sustentabilidade.
E ela estará garantida se o Estado continuar a cumprir a parte que lhe cabe, isto é, concorrendo para o sistema contributivo, como tem feito até agora, através dos impostos. É importante considerar-se como opção política válida a Segurança Social ser em parte sustentada pelos impostos, porque é uma questão da qual depende a qualidade de vida das pessoas e a coesão social.

Que outros mecanismos são possíveis?

Os cálculos das contribuições, por exemplo, que devem ser redefinidos e actualizados, sobretudo quando há grandes reestruturações económicas ? que em Portugal, aliás, ainda não ocorreram na sua máxima força.
Mas a ocorrerem, é evidente que as empresas de capital intensivo, que apesar de ocuparem poucos trabalhadores possuem um grande valor acrescentado e não contribuem de forma igualitária com aquelas empresas que empregam um maior número de trabalhadores (uma vez que as contribuições são calculadas em função do número de activos e não do valor acrescentado da própria produção) terão de passar a contribuir de acordo com este pressuposto.
Repito, mais uma vez, que se trata uma questão eminentemente política e não técnica, e que quando se afirma que a segurança social é inviável e precisa de ser privatizada isso se deve à influência dos lobbies dos fundos de pensões ou de cientistas sociais mais ou menos ingénuos que tentam justificar aquilo que não tem justificação.
O próprio prémio Nobel da Economia, Joseph Stieglitz, refere que está perfeitamente convencido de que os sistemas públicos não só têm total viabilidade como defende que o sistema privado poderá vir a comportar mais encargos para o Estado do que o sistema público.

Que espaço tem Portugal, enquanto país periférico europeu, para fugir à lógica das regras emanadas dos países mais influentes da União Europeia?

Portugal tem total autonomia neste domínio porque as políticas sociais são definidas ao nível de cada Estado e não ao nível da União Europeia. Os defensores da privatização do modelo social podem invocar esse argumento para concretizar o desmantelamento do Estado-Providência promovido pelas elites e por alguma classe política portuguesa, mas eu estou convencido que os portugueses não vão deixar que isso aconteça porque já estão a aguentar muita coisa.

Pensa que no actual contexto político português estão criadas as condições para uma reforma da Segurança Social, nomeadamente dos fundos de pensões e de reformas, que acautele esse modelo social inerente ao Estado-Providência?

É evidente que há lobbies muito fortes no sentido da privatização parcial dos fundos de pensões da Segurança Social. Na Comissão do Livro Branco para a Segurança Social, por exemplo, estavam presentes vários agentes do capital financeiro, nomeadamente Bagão Félix, que depois foi ministro desta área e que, enquanto responsável pela tutela, quis avançar com esse processo de privatização parcial. Será natural, portanto, que essa política irá ser posta em prática de uma forma mais ou menos agressiva.
Os dois principais partidos políticos em Portugal partilham alguns princípios gerais e julgo que a única grande diferença reside no facto de um aplicar as políticas de uma forma mais suave e o outro de forma menos suave. Nesse sentido, penso que o actual governo quer sobretudo transmitir uma imagem de eficiência (veja-se as transformações na administração pública), que pode, no entanto, ser invocada amanhã numa área como a Segurança Social e, dessa forma, cercear-se alguns direitos sociais. Isso será extremamente negativo, porque Portugal já tem um patamar de direitos sociais muito baixos.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 155
Ano 15, Abril 2006

Autoria:

Boaventura de Sousa Santos
Fac. de Economia da Univ. de Coimbra
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação
Boaventura de Sousa Santos
Fac. de Economia da Univ. de Coimbra
Ricardo Jorge Costa
Jornalista do Jornal A Página da Educação

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