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Rescaldo de uma eleição equívoca

A eleição presidencial mostrou um resultado equívoco: a maioria esmagadora dos portugueses (os que não votaram no candidato eleito  e os que se abstiveram) tem um presidente que não escolheu. O que, desde logo,  leva a uma  conclusão: nenhum dos candidatos respondia a todas as expectativas. O que também leva a uma interrogação patética: será porque Portugal não tinha melhor para oferecer ou  porque os portugueses desejavam o impossível? Admita-se que um número pouco relevante (?) de eventuais votantes não exerceria nunca o seu direito de voto por lhe ser indiferente quem quer que fosse o representante da Nação.
Um eleitorado tão dividido e displicente  é realmente patético. Dirão alguns que um dos valores da democracia é o direito de votar (mesmo que seja em branco, como efabulou José Saramago) e não votar. Não é assim em todas as democracias: países há em que votar é  um dever que se não for cumprido é punível. E compreende-se: que direito de criticar, protestar ou reclamar contra o estado da Nação  ou do seu mais representativo magistrado teria aquele cidadão que desprezou ou abdicou do seu primeiro direito de  cidadania? 
A democracia tem as costas largas, como soe dizer-se, e a cidadania muitas vezes não passa de um chavão que esconde o seu contrário. Juntas as perversões   desses valores sacramentais, fica  o campo aberto para os fariseus e os bufarinheiros que vendem e apregoam a qualidade das suas lebres, sendo gatos,  ou prometem curas com chás milagrosos, sendo  inócuos capins.
Em campanhas eleitorais são comuns as falsidades e as ilusões, umas vezes  porque é escondido o rabo do gato, outras, porque o melhor das mezinhas está na  convicção da sua eficácia. Mas se perguntarmos como funciona o poder da sugestão a um publicitário do Primeiro Mundo ou a um curandeiro do Terceiro  eles dirão (ou não, porque o segredo é a alma do negócio)  algo parecido com o  ?postulado? de Pavlov sobre os reflexos condicionados. O célebre fisiologista russo tirou as suas conclusões, há cem anos,  com experiências em cães,  mas, se fosse hoje, ele teria a investigação facilitada vendo como a publicidade e a propaganda, através de palavras e imagens, actuam sobre o sistema nervoso central do público.
Lamentavelmente,   a campanha eleitoral não foi tribuna de toda a  verdade  que se exigiria de quem se propunha  ser  a ?voz? e o ?espírito? de todos os portugueses. Convenhamos que isso seria difícil, porque os portugueses são muitos e tão variados como os seus pessoais interesses. Dificuldade acrescida quando, pela ausência de um projecto, estratégia ou filosofia nacional, que a todos mobilizasse por uma superior razão, cada votante escolheu o candidato que melhor se adequava à realização dos seus particulares interesses,  da sua classe ou grupo social. 
Quantos candidatos, quantas vezes e com que ênfase, falaram em povo, pátria ou nação, demonstrando assim serem imunes às colagens dos rótulos político-partidários que confundem o patriotismo (amor à pátria) com o nacionalismo (chauvinista e xenófobo)? Apenas um deles, salvo erro,  identificou  ?o país? (termo cómodo por  insusceptível de suspeições) como pátria e nação. Sendo uma figura declaradamente da esquerda, na qual ninguém de bom senso veria emergências da direita,  não teve pruridos em imprimir no seu discurso patriótico o sentido exacto que àquelas palavras confere qualquer dicionário. 
Nesta ?ousadia? de desafiar as conotações e os anátemas não se pode ignorar um sentido e uma direcção. O sentido é o de que as pátrias e as nações existem a despeito da rasoira cultural da  Globalização  mercantilista e a direcção é a que aponta para o horizonte onde o Multiculturalismo não é um corpo difuso, sem forma nem conteúdo,  mas um conjunto concertado das partes componentes.
No contexto desta campanha eleitoral,  viu-se  apresentado como vector do próximo destino português o apagamento do espírito da Nação por imolação ao espírito do Mundo (sabendo-se que, no máximo,  só o  Grupo poderá ter um ?espírito?). Entendida como razão de sobrevivência num espaço fortemente competitivo, essa imolação significa, de facto, disponibilidade para a desnacionalização e o despatriamento,  sob o pretexto e os benefícios da submissão aos senhores da  Guerra e do Capital, que também envergam os trajos  da Paz e do Progresso.  
Debalde o presidente cessante fez discursos exortativos sobre a auto-estima dos portugueses; debalde, num dos últimos, ele instou os portugueses a não perguntarem o que poderia Portugal fazer por eles, mas o que poderiam eles fazer por Portugal. Era um desafio geral: aos que, por abandono ou negligência,  consentem que o território nacional arda um pouco mais todos os anos; aos que poluem os rios e as nascentes e reclamam por falta de água potável; aos que vendem as propriedades  aos estrangeiros e não se importariam de vender todo o país; aos que dizem que Portugal é a Lusitânia e, nesta qualidade, poderia ter vantagens em ser mais uma região da Hispânia, etc. etc.         
Que pensariam disto os tchetchenos, os azeris, os palestinianos, os povos africanos e  ameríndios detentores de uma língua e uma cultura próprias, que podem não saber que o Eclesiastes já dizia, há milénios, que tudo passa, menos a terra, mas não empenham, trocam ou vendem aquela sua onde foram sepultados  os antepassados e continuam a nascer os filhos, e não se importam de morrer lutando para terem o direito de dizer como o Poeta angolano: ?Nós somos.??
Provavelmente pensariam que só valoriza a pátria quem dela foi expulso ou nela foi escravo. E que só os ricos e os poderosos podem dispensar a honra e o privilégio de terem um chão das raízes.


  
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Edição:

N.º 154
Ano 15, Março 2006

Autoria:

Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto
Leonel Cosme
Escritor - Jornalista, Porto

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