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Aprendizagens em contradição: entre Paulo Freire e o cientificismo

A teoria deve aplicar-se à prática e as falhas desta última associam-se aos problemas de compreensão da primeira.

Há alguns meses, participei de um programa de televisão veiculado pela TV Educativa do Brasil. Minha participação se enquadrava numa série destinada à discussão sobre a Educação de Jovens e Adultos e versava sobre o problema da não continuidade da ação educativa após os processos de alfabetização desses adultos excluídos do sistema regular de ensino. Professoras de todo o país encaminhavam perguntas sobre o tema para as três ?especialistas? presentes. Causou-me forte impressão perceber como as professoras, todas adeptas das idéias de Paulo Freire, nos encaminhavam perguntas nas quais o pensamento dominante sobre a escola, o processo ensino-aprendizagem e a sua função social se evidenciava, numa contradição flagrante com aquilo que dizia Freire.
Ou seja, aquilo que elas aprenderam em sua formação e em seus estudos, embora tivesse, para elas e em seus discursos, moldado o seu pensar, não tinha força suficiente para superar as aprendizagens não oficiais, longe dos processos formais de ensino, que levam muitos de nós, que atuamos nas escolas, a ?saber?, por exemplo, que uma turma heterogênea é um problema para o professor, mesmo para aqueles que acreditam, com Freire, que a escola deve se aproximar da vida cotidiana, na qual não existe homogeneidade nem de idade, nem de saberes, nem de comportamentos, crenças e valores. Aprendemos também, e as professoras nos traziam inúmeras perguntas que evidenciavam isso, a "saber" que a teoria deve aplicar-se à prática e as falhas desta última se associam aos problemas de compreensão da primeira. A angústia evidente diante da incapacidade dos alunos de entender o que ensinavam perturbava o sono das professoras que acreditavam que se "aplicamos" os conteúdos corretamente e os alunos não aprendem, é porque não são capazes de entender. O que fazer, nos perguntavam elas? O que responder, perguntávamo-nos nós? A idéia freiriana, defendida por todas, da dialogicidade entre os diferentes saberes como forma de se encaminhar o processo ensino-aprendizagem chocava-se contra a de "educação bancária" que está subjacente à angústia diante do fracasso do processo de "aplicação" de conteúdos. Como poderíamos, freirianamente, dizer-lhes do nosso não saber a respeito da solução? Da não aplicabilidade de conteúdos ou de teorias à prática e da necessidade do desenvolvimento de um trabalho único e dialógico com cada aluno e com cada turma? Isso lá é resposta?
Elas também "sabiam" que ?é preciso superar o senso comum? através do acesso ao saber científico. Aqui teríamos encontrado, finalmente, o pensamento de Paulo Freire! Ainda não, creio eu, porque, ao contrário de Freire e da idéia de que, partindo-se do que o aluno já sabe, através do diálogo entre esses saberes e os saberes formais, a educação poderia levá-los a uma mais ampla e capacitada leitura de mundo, a negação do status de saber aos saberes dos jovens e adultos a serem escolarizados e o seu entendimento como ignorância, deixava entrever os tentáculos do cientificismo moderno e sua crença de que o conhecimento só o é quando produzido dentro dos padrões da ciência.
Tanto nós, os entrevistados, quanto as professoras que nos questionavam aprendemos fora da escola coisas que criam, difundem e realimentam, preconceitos e processos de exclusão através da hierarquização social e cultural entre sujeitos e saberes. Vencê-las, desaprendendo-as, não é possível apenas pela aprendizagem na escola, é preciso que valores diferentes destes estejam, também, fora da escola, na vida de todos nós, na sociedade.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 154
Ano 15, Março 2006

Autoria:

Inês Barbosa de Oliveira
Fac Educação da Univ. do Estado do Rio de Janeiro, pós-doutoranda na Univ. de Coimbra
Inês Barbosa de Oliveira
Fac Educação da Univ. do Estado do Rio de Janeiro, pós-doutoranda na Univ. de Coimbra

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