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Os sons da rua na sala de aula

O exercício de escutar as ruas e suas diversas ?paisagens sonoras? ainda não se tornou hábito nas escolas, nem mesmo nas escolas de música, embora o educador musical e compositor canadense Murray Schafer venha falando da importância da escuta crítica do soundscape desde os anos 70.(1) Se os discursos sobre educação musical parecem ?avançados?, a realidade é que a maioria das crianças continua entrando nas escolas de música para aprender o código musical, sem ao menos ter a oportunidade de exercitar suas diferentes formas de ouvir o mundo. E por que não escutar o mundo e seus diferentes cenários sonoros? Por que insistir em ignorar as diferentes vivências musicais trazidas pelos alunos?
Pensando sobre estas questões, desenvolvi, junto aos meus alunos, um projeto de escuta das ruas.(2) Para desenvolvê-lo, era preciso seguir os conselhos de Freire e Faundez (1985) (3) e exercitar um modo de fazer com que os alunos pudessem ?viver a pergunta, viver a indagação, viver a curiosidade? partindo da cotidianeidade, do vivido e do experienciado. Era preciso, ainda, tomar as palavras de Cyrulnik como eixo norteador: ?não tendo a mesma história, não temos os mesmos olhos, não podemos pois encontrar os mesmos objetos!?(4) ?Não tendo a mesma história?, não temos também os mesmos ouvidos. Neste sentido, escutar as ruas seria uma possibilidade de entender os ?lugares praticados? (5) por estes ouvintes, suas vivências musicais. 
Na escuta de ?sons fundamentais?, ?sinais? e ?marcos sonoros? (soundmarks) (6), fomos descobrindo que nossos trajetos cotidianos revelavam sons muito interessantes.  Muitos alunos registraram sons da natureza, mostrando que, mesmo numa cidade considerada ?barulhenta?, havia, ainda, algum espaço para os ?sons fundamentais?. Um dos alunos destacou a importância dos ?marcos sonoros?, melhor dizendo, dos sons únicos que uma determinada comunidade pode conter. Foram registrados, também, vários tipos de ?avisos acústicos? (sinais), como sirenes e sinos. Outros alunos registraram ruídos de ar condicionado, freadas, pregões de vendedores de rua, gritos e vozes de passantes.
Desse emaranhado sonoro, algumas pesquisas ressaltavam o incômodo causado pelo intenso tráfego de veículos, exemplificando o que Schafer denomina ?paisagem sonora  lo-fi (low-fidelity)?, ou seja, um tipo de paisagem em que há uma profusão de ruídos, e na qual se perde a ?perspectiva?, acarretando o aumento da intensidade dos sons e a maior competição entre eles.
Pensando sobre a necessidade de se refletir sobre os sons da rua, propus aos alunos que reconstruíssemos o cenário sonoro citadino. Assim, fomos compondo coletivamente, utilizando não somente nossos registros, mas também nossas criações. Foi tomando forma uma ?paisagem? ruidosa e musical, tal como a lo-fi, na qual se destacavam pregões. Um dos pregões, o do ?boleiro?, acabou se tornando tema principal da música, pois, de uma forma muito natural, os alunos foram se lembrando, paulatinamente, do pregão, visto que o boleiro era um personagem conhecido nas ruas de São Gonçalo, onde a esmagadora maioria dos alunos residia: todos conheciam o boleiro que batia com um ?ferrinho? no carrinho. (7)
A pesquisa reafirmou a importância da incorporação das músicas das ruas como conteúdo musical dentro das escolas, pois, num trabalho que pretende incluir as diversas ?músicasmundo? (8), há que aparecer pregões, caminhões, freadas, sons de passarinhos,  enfim, sons que habitam o cotidiano de nossos alunos. Com eles, podemos aprender a ?viver a pergunta?, a ?curiosidade?  e a ?indagação?, como nos ensinou Paulo Freire. Com eles, podemos aprender a nos ?espantar? com o cotidiano ao incorporarmos essas diversas e ricas ?paisagens sonoras? à nossa escuta. Uma escuta que pode se tornar, cada vez mais, ?pensante? (Schafer,1996).

Notas:

 1) O termo ?paisagem sonora? é a tradução de soundscape - conceito cunhado por Schafer para se referir a qualquer tipo de campo acústico. Para mais informações ver SCHAFER, M. O ouvido pensante. São Paulo, UNESP, 1996.
2) A pesquisa foi realizada em ruas que os alunos costumavam freqüentar nos municípios de Niterói, Rio de Janeiro e São Gonçalo, todos localizados no Estado do Rio de Janeiro.
3) FREIRE, Paulo, FAUNDEZ, Antonio. Por uma pedagogia da pergunta. São Paulo: Paz e Terra, 1985, p.48.
4) CYRULNIK, Boris. Os alimentos do afeto. São Paulo: Ática, 1995, p.19.
5)  CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1996.
6) Conceitos trazidos por Schafer  no livro ?A afinação do mundo? (São Paulo: UNESP, 2001).
7) Pregão: É o bolo, É o bolo, É o bolo/ É o bolo do boleiro / Cachorro não mia, gato não late / Aqui tem bolo de chocolate / Olha que legal / O bolo caseiro é um real / É o bolo, É o bolo, É o bolo/ O boleiro vai passando/ Tem de coco e de morango / É o bolo, É o bolo, É o bolo / O bolo maneiro é o bolo caseiro / É o carro do boleiro / Olha que legal / O bolo caseiro é um real / Aqui não tem moleza não / tem o bolo de limão / É o bolo, É o bolo, É o bolo / o boleiro está aqui / Tem bolo de abacaxi.
8) Tomei por empréstimo a ?palavramundo? de Paulo Freire para criar este neologismo.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 154
Ano 15, Março 2006

Autoria:

Christiane Reis Dias Villela Assano
Univ. Federal Fluminense, UFF - Integrante do Grupo de Pesquisa "Alfabetização dos Alunos das Classes Populares", Rio de Janeiro, Brasil
Christiane Reis Dias Villela Assano
Univ. Federal Fluminense, UFF - Integrante do Grupo de Pesquisa "Alfabetização dos Alunos das Classes Populares", Rio de Janeiro, Brasil

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