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O "corpo-máquina" e o desaparecimento da diferença sexual

Para Lacan, o mal-estar de que fala Freud procede  da pergunta: de que temos medo? E ele responde: ?Do nosso corpo?.
(...) a angústia é justamente algo que se situa alhures em nosso corpo, é o sentimento que surge dessa suspeita que nos vem de nos reduzirmos ao nosso corpo. (...) a angústia não é o medo do que quer que seja de que o corpo possa motivar-se. É um medo do medo. (Lacan, 1974 : 27)

Há em nosso momento histórico uma mudança ? na clínica e fora dela ? em relação à época freudiana, que situava a culpa como sintoma da transgressão aos conteúdos inconscientes proibidos ao sujeito. O que encontramos hoje parece ser exatamente o contrário: o sujeito sente-se culpado porque não goza.
Em Clube da luta(1), o acontecimento desencadeador tem justamente essa natureza. Jack tem todas as condições materiais para aproveitar bem a vida, e se esforça nesse sentido. Progressivamente, no entanto, seu mundo vai se desintegrando, na medida em que ele não encontra suporte simbólico que sustente e dê sentido à realidade que o cerca: é a ?falta da falta? lacaniana, quando o sujeito se encontra impossibilitado de desejar. No caso de Jack, a questão se resume na ausência da mulher ? substituída em seus sonhos por um pingüim, e mais adiante pelo verdadeiro ?estranho?, na medida em que a personagem Marla passa a fazer parte de seu simbólico. Trata-se aqui da mulher como um suporte da falta no homem; trata-se, em outras palavras, da afirmação lacaniana de que ?a mulher é o sintoma do homem? ? o que no filme se evidencia num viés misógino, que mostra a mulher como um ?signo da decadência dos valores espirituais masculinos?.
Analisando a questão sob outra perspectiva, deparamos com o chamado ?pós-humano?, que aparece com freqüência nas discussões acerca da cibernética, do ciberespaço, da arte etc. Em Clube da luta, a questão se apresenta despida dos artifícios normalmente encontrados no tratamento do tema (como implantes eletrônicos, hibridismo, tecnologia genética etc.). Da perspectiva psicanalítica, a diferenciação entre homem e máquina no filme não está na capacidade de cada um de raciocinar ou no implante de chips, mas no desaparecimento da diferença sexual(2)[1]. A polêmica imemorial de que a sexualidade é o verdadeiro obstáculo à ?espiritualidade humana? ? polêmica que marcou sobretudo as religiões, e que se nota particularmente na condenação, por parte destas, da mulher ? encontra no ciberespaço uma nova fronteira, com a possibilidade de prescindir do corpo.
O problema da diferenciação entre corpo e máquina sintetiza grande parte dos esforços teóricos, quer adotem uma perspectiva positivista, quer não. A tentativa de reduzir esta diferença a ?materialidades positivas? traz à baila velhas questões filosóficas, a saber: que uma positivação suficiente implicaria o domínio de uma materialidade anterior, objeto teoricamente ainda incerto, e renovaria a discussão cada vez mais estéril sobre as diferenças entre natureza e arte. A idéia de que existem fronteiras precisas entre o homem e outras coisas, sejam estas outros animais ou máquinas, pressuporia uma ?naturalidade humana?, ou seja, um homem sem a entrada na cultura, uma ?coisa determinada?. Nesse sentido, a descoberta de que há pouca diferença entre as cadeias genéticas do homem e de outros animais, como ratos e galinhas, acabou constituindo uma forma de frustração para muitos cientistas, pois havia uma certa expectativa por partes destes de encontrar de alguma maneira a cultura na genética.
A genética ilustra muito bem essa discussão, já que tanto a defesa da ?essência humana? como o empenho numa ?remodelação? do homem enfrentam diretamente esta questão: houve afinal algum dia algo acabado que se chamou ?homem?? Há alguma ?essência? a ser defendida ou remodelada? A questão da origem, a busca incessante por um ponto inicial de onde se poderia recomeçar tudo ?da forma certa? ? como na procura mítica pelo Santo Graal ? atravessa quase todos os campos do saber.

1) Clube da luta (Fight Club. Dir. David Fincher. EUA, 1999) - O do narrador (Edward Norton), um funcionário comum e bem pago de uma companhia de seguros, que leva uma vida yuppie, centrada na aquisição de bens de consumo típicos da esfera social a que ele aparentemente aspira. Ocorre então que este narrador passa a não conseguir dormir e inicia uma peregrinação que começa num consultório médico e termina em diversos grupos de auto-ajuda. Aparece então Tyler Durden (Brad Pitt), aparentemente um vendedor de sabonetes que conhecera no avião e com o qual desenvolve um estranho comportamento: o de trocarem socos sem motivo. Isso leva à organização de um clube secreto para a prática desse tipo de luta. Com o tempo, o clube passa a ter finalidades políticas, voltadas fundamentalmente à destruição de organizações ligadas de alguma maneira aos bens de consumo. A organização, no entanto, cria vida própria, e o narrador, que ganha o apelido de Jack, começa a discordar dos rumos tomados. É nesse momento que ele começa a descobrir que seu companheiro Tyler não é bem quem ele pensava.      

2) Ver Zizek em No Sex, please, we?re post-human!. Disponível em www.lacan.com/nosex.html. Acesso em 15 Abr. 2000.

[1]. Ver Zizek em No Sex, please, we?re post-human!. Disponível em www.lacan.com/nosex.html. Acesso em 15 Abr. 2000.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 153
Ano 15, Fevereiro 2006

Autoria:

João Fantini
Univesidade Federal de São Carlos-Brasil, Departamento de Psicologia
João Fantini
Univesidade Federal de São Carlos-Brasil, Departamento de Psicologia

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