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Sons ambiente

Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo

As portas das salas têm mais de 15 centímetros de espessura e não terminam no chão. Fecham inseridas numa espécie de moldura. São insonorizadas. Mas o som faz-se vibrar a cada lanço. Vagueia os corredores frios que servem de passagem e local de ensaio aos alunos. A Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo (ESMAE), no Porto, é para ser vista e escutada.

Onze horas. Na porta do gabinete de Francisco Beja, director da Escola Superior de Música e Artes do Espectáculo, um papel colado avisa: ?Aula a decorrer, por favor, não interromper.? Acordamos uma visita guiada. Esperamos. A porta abre-se... Francisco Beja sai apressado: ?Tenho de ir agora para Lisboa...? Pede que o sigamos. Por corredores, átrios e pátios... A passos céleres. ?Vou arranjar aqui uma pessoa para me substituir, alguém que conhece muito bem a escola.?
A ESMAE foi criada em 1994, ocupando um antigo edifício onde funcionaram, até à década de 80, uma escola primária e outra do Magistério. Estruturada numa espécie de U, cada um dos braços acolhe um departamento de Música e outro de Teatro que oferecem cursos de bacharelato e de licenciatura bietápicas.
Na área da Música a formação engloba o ensino de todos os instrumentos de Orquestra, excepto a harpa. Existem licenciaturas de Canto, Composição, Formação Musical, Sopros e Cordas, Guitarra, Percussão, Teclas, Música Antiga, e Jazz e Produção e Tecnologias da Música.
Mas é ao departamento de Teatro que nos levam os passos apressados de Francisco Beja. Nesta área, a ESMAE forma actores/intérpretes e técnicos nas áreas da direcção de cena e produção teatral, figurino, luz e som. Entretanto, o guia eleito é Henrique Costa, administrativo daquela secção. É atrás dele que, durante toda a visita, vão andar vários alunos para reservar bilhetes mais ?baratos? para alguns espectáculos em cena nas salas portuenses. Algo possível graças aos acordos que a escola estabelece com algumas companhias e produções. ?Vocês esquecem-se que os bilhetes têm de ser reservados com dois dias de antecedência!? A advertência será repetida vezes sem conta.

Check sound

Teatro Helena Sá e Costa. É uma das valências da ESMAE. Foi construído sob um pátio que servia de recreio e mediava dois edifícios das antigas instalações. Na sala prepara-se um exercício do curso de Produção e Tecnologias da Música. A tarefa consiste em fazer o som de palco e o som de sala para uma banda. ?O som de palco diz respeito ao modo como cada músico ouve o som da banda, o objectivo é que o ouça a um nível que lhe permita tocar bem?. Por outro lado, ?o som da sala é o que os espectadores ouvem?. Cláudia Valente, a técnica de luz do Teatro que está a dar apoio aos alunos, é quem dá as explicações. Em palco estará a banda 3 Angle que actuará em duas noites. O preço dos bilhetes dos concertos será ?simbólico?.
O som. Desejado e evitado. As salas de aulas são insonorizadas. Um pormenor que faz com que todas as portas, abertas à nossa espreitadela, sejam incrivelmente pesadas. Contam com duas camadas exteriores de madeira entremeadas com areia.
Mas há portas que não se fecham completamente. E há notas que rompem as barreiras impostas. Sons de Marimba ecoam pelo corredor. É um instrumento musical que se assemelha a um tambor composto de lâminas de metal, ou vidro, e que são graduadas em escala. Toca-se com baquetas. É Paulo Costa, 31 anos, quem está a ensaiar. Ou antes, a estudar. Em música ensaiar, estudar e tocar são palavras quase sinónimas. Apesar de ser aluno do 3º ano do curso de Percussão, Paulo Costa é também professor numa academia de música. Tem pouco tempo para ensaiar, queixa-se mas permite-se fazer uma interrupção. Chegou ?tarde? à ESMAE , diz, relativamente aos colegas que iniciam a sua estadia aos vinte e poucos. E numa área onde o trabalho individual é crucial a falta de dedicação, ainda que por força das circunstâncias, paga-se a um preço alto. ?Conciliar as vinte horas de aulas que dou por semana, com as que tenho de frequentar e o tempo que necessito para ensaiar, é bastante complicado?, desabafa.
Por agora, o ensino é ?um meio de subsistência?, mas não faz parte dos seus projectos. O sonho é fazer com que as suas participações em quartetos de percussão aumentem e saiam do espartilho a que foram relegadas. ?Quero dedicar-me exclusivamente a ser músico!? E para não comprometer ainda mais o seu futuro deixamos Paulo Costa ensaiar.
Rumamos a outro espaço: a Sala Preta. O nome advém, claro, do facto de o seu interior estar totalmente pintado de preto: chão, paredes e tecto. E de as janelas estarem cobertas com estores eléctricos que a qualquer hora do dia fazem cair a noite. Henrique Costa explica com entusiasmo de quem sabe o que diz a funcionalidade da negrura da sala. ?O preto é essencial no teatro porque não espalha a luz, concentra-a, ou seja, se nada dispersa a luz pode-se fazer tudo!? A ausência da cor permite que no interior se possa simular um espaço ideal ou, no limite, a própria ausência da sala.
Ao ouvir a ?dissertação? sobre o preto, Diogo Leichsenring interrompe. ?No que toca ao som, a cor da sala não interfere em nada...? É professor de prática oficinal relacionada com a sonoplastia, a técnica de reconstituição artificial dos ruídos e efeitos acústicos e musicais. ?Quando se faz a sonoplastia é preciso ter em conta que a parte criativa vai estar dependente da parte técnica.? Para já Diogo Leichsenring está a fazer uma avaliação sonora do espaço. Apenas interrompe o seu trabalho para dar algumas explicações sobre o que pode interferir com o som de uma sala: a disposição do público, das colunas em relação às paredes, ao chão ou aos actores, são alguns exemplos. Mas também a existência de cortinas. ?Se forem de tecido vão abafar o som, porque o absorvem?, explica o professor. O mesmo princípio se aplica ao modo como o público está vestido. ?Se estamos no Verão e a assistência veste pouca roupa, o som sai mais amplificado nos sons agudos.?

?Bases, entrega e dedicação?

?Bases, entrega e dedicação.? Três palavras que para José Paulo, professor de piano, representam ?o mínimo que se pode esperar de um aluno que queria fazer um curso na área da música como instrumentista?. Sentado ao piano José Paulo está acompanhado por Kevin Wauldron, professor de trompete. Iniciavam uma aula de trompete com dois alunos quando aceitaram ser interrompidos.
O gosto pelo trompete é idêntico. Paulo Veiga, 26 anos, e Carlos Martinho, 18 anos, frequentam juntos a mesma aula. No entanto, as suas bases musicais são bem diferentes. E talvez elucidativas da evolução do ensino da música em Portugal. Paulo Veiga começou a estudar música aos 17 anos ?numa idade em que a maioria dos alunos já está a entrar para a universidade?.
Por ter iniciado tarde a sua formação, a dedicação de Paulo Veiga teve de ser ?absoluta?. ?Comecei tarde o meu percurso, por isso, não posso fazer grandes desvios!? Apenas os necessários. Como o trabalho de guarda-nocturno. Sete horas diárias de jornada. Se o estudo é teórico, Paulo Veiga consegue passar os olhos pelos livros à noite. Mas se o caso implica ensaiar no seu trompete apenas consegue tocar umas três horas por dia. ?O que não é suficiente?, diz o aluno sobretudo para quem como ele vê o seu futuro a ensinar mas também tocar numa Orquestra.
Carlos Martinho, a frequentar o 1º ano do curso de Trompete, é o exemplo de quem chega já ao Ensino Superior com ?bases? de música. Chegou à ESMAE vindo do Conservatório de Música de Braga, onde fez o ensino Básico e Secundário. Kevin Wauldron confessa um orgulho especial neste aluno. A razão assenta na particularidade de Carlos Martinho já ter tido como professor um aluno seu. ?É como se fosse meu neto da parte da música?, graceja. Mas é muito mais que isso como observa Kevin Wauldron. ?Os alunos mais novos chegam ao ensino Superior com cada vez mais conhecimentos porque os seus professores começam também já a ser muito bem formados!?
Saber as dificuldades que enfrentam os alunos que enveredam pelas áreas artísticas, não fez Carlos Martinho mudar de ideias quanto à formação a seguir: ser professor de trompete. E assim dar mais alguns ?bisnetos? ao seu professor. No ensino de um instrumento, uma aula pode ter apenas um professor e um aluno. O trabalho de desenvolvimento do aluno reveste-se de um carácter mais individualista. Suavizado apenas quando o aluno toca num grupo. Pelo contrário, o ensino do teatro pressupõe um colectivo. O facto de a turma ser avaliada pela apresentação de uma produção teatral cria entre os seus elementos laços de uma maior interdependência. Por isso há que criar no grupo ?relações de confiança?. É essa a tarefa formativa de Cristiana Rocha, professora da disciplina de Movimento que está a dar aula a uma turma do 1º ano do curso de Interpretação de Teatro.
Os alunos trabalham aos pares. Vestem roupa a fugir para o desportivo e estão descalços. Enquanto um aluno permanece de pé com os olhos fechados, o outro faz pequenas massagens nas pernas, tornozelos e pés. Movimentos sempre orientados pela voz suave da professora. ?Têm de sentir a estrutura que está entre uma mão e outra: os músculos, a gordura, os ossos...?
O corpo para o actor é a sua ferramenta de trabalho quando este tem de assumir uma personagem. ?É preciso ter a noção do que o corpo pode fazer e de que ele não é apenas movimento involuntário?, explica Cristiana Rocha. Aí reside a importância do que estão a fazer. ?Estamos a trabalhar a consciencialização corporal.?

Internacionalização

O investimento na internacionalização da escola é uma das preocupações de Francisco Beja, director da ESMAE. A par da promoção do intercâmbio de alunos e professores. A troca de experiências de formação e de contacto com outras realidades musicais e teatrais no estrangeiro ?é extremamente gratificante?, salienta o director. Por isso, a ênfase que o Processo Bolonha coloca na mobilidade é aguardado com expectativa. ?Bolonha abre a porta a um espaço europeu que vai além da União Europeia e que nos interessa bastante!?, esclarece Francisco Beja.
A introdução de uma componente de formação pós-graduada, presente no segundo ciclo de estudos, até agora impossibilitada ao Ensino Politécnico é, para o director da ESMAE, outro dos aspectos positivos do Processo de Bolonha. O modelo adoptado pelo Ensino Politécnico é o de um primeiro ciclo de três anos, com 180 créditos e um segundo ciclo de dois anos. ?É um modelo que se encontra por toda a Europa?, esclarece o director, contrapondo, ?mas o que nos interessa é ter um modelo que seja reconhecido internacionalmente, não precisa de ser igual ao dos outros países.?
Outra das consequências positivas de Bolonha, diz Francisco Beja, é ?introduzir nas universidades a preocupação de ter a certeza se realmente fazem aquilo que dizem fazer e com qualidade!? Esse ?espírito de avaliação, aferição e preocupação com a qualidade?, garante o director, resultará numa mais valia para os alunos. Numa área onde a precariedade do emprego é mais evidente uma formação de qualidade será uma boa âncora.
Inquéritos recentes realizados pela ESMAE, para a execução dos relatórios de avaliação externa dos cursos, ?mostram que são poucos os alunos que têm uma actividade profissional fora do universo da intervenção artística?, garante Francisco Beja que diz haver tanto na área da música como no teatro ?um grande grau de empregabilidade e muitos alunos a criarem o seu próprio emprego?. Apenas uma ressalva, a de sempre. Diz respeito à precariedade gerada pelos cortes públicos nos programas de apoio ou sustentação das artes e do espectáculo, sempre que se abate uma crise financeira. Um cenário que já não espanta Francisco Beja: ?É um mundo muito sujeito às vontades políticas!?

Saídas profissionais

?As pessoas imaginam que a saída profissional de um aluno que estuda teatro é ir para o palco, mas há um leque variado de opções?. Uma visão limitadora das potencialidades daquele curso, na opinião de Francisco Beja. ?Estes profissionais podem trabalhar em projectos com jovens em escolas ou comunidades.? Este campo da animação teatral, ?existe?, afirma, ?embora não seja muito difundido em Portugal?.
No mercado de trabalho para os alunos/actores contam-se ainda os centros de produção audiovisual. ?O problema é que o país sofre de macrocefalia e quem acabe um curso de teatro no Norte ou em qualquer outro ponto do país e queira trabalhar no cinema e na televisão tem de ir para Lisboa?, lamenta Francisco Beja.
Na área da música, ?o campo das saídas profissionais está muito mais desenvolvido que no teatro?, explica Francisco Beja. O ensino vocacional da música em academias, escolas de música, ou profissionais e conservatórios regionais públicos ou privados, são alguns exemplos. Para além, do exercício da própria actividade artística como cantores, instrumentistas e compositores.
A pensar nos alunos, Henrique Costa trás consigo uma folha A4. É um dos anúncios que lhe vão chegando por email. A escola não dispõe de um gabinete formal de procura de emprego, mas há uma prática informal que funciona. Á entrada do Café Concerto, um espaço que serve de bar aos estudantes e de sala de espectáculos e jam sessions, um painel serve para afixar as propostas endereçadas à escola. Quando Henrique Costa de aproxima alguns alunos achegam-se a ele para dar uma olhadela. ?O Pin Teatro procura um técnico de luz e som?, lê-se no papel. Alguém há-de responder.

Breve Glossário

Ciclorama

Painel negro que serve para a projecção de imagens num cenário, normalmente o material usado é o pano, mas podem ser outros.

Pernas

Panejamento lateral ao cenário e colocado do tecto ao chão cuja que serve para esconder os actores.

Sonoplastia

Técnica de reconstituição artificial dos ruídos e efeitos acústicos e musicais de espectáculos teatrais, filmes, programas de rádio ou televisão.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 153
Ano 15, Fevereiro 2006

Autoria:

Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação
Andreia Lobo
Jornalista, A Página da Educação

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